A bioética que se impôs em nossos contextos tem uma identidade predominantemente clínica, preocupada com os problemas éticos decorrentes da aplicação de biotecnologias à saúde, especialmente em situações iniciais e terminais da vida humana. Nesse desenvolvimento ela construiu um sistema consistente de argumentação ética, explicitada pelos célebres princípios da bioética, com uma epistemologia baseada na ética aplicada (Beauchamp, Childress, 2002). Assim, ela foi se constituindo com aperfeiçoamento da ética médica. Essa configuração fez esquecer que a bioética, na sua origem, não surgiu com um rosto clínico, mas preocupada com questões ambientais. Nesse sentido, o berço da bioética não é a medicina, mas a ecologia.
Potter (1971), ao propor a bioetica, como um saber que conjugasse conhecimentos biológicos e valores morais, estava preocupado com a ampliação e proliferação das tecnologias com seus efeitos sobre o ambiente, colocando em perigo as condições para a reprodução da vida. Por isso, para ele, a bioética é a ciência da sobrevivência da vida no planeta terra. Nessa mesma época, Hellegers e o Instituto Kennedy da Universidade Georgetown nos Estados Unidos usaram a mesma palavra, entendida como alargamento da ética médica, com uma identidade clínica preocupada unicamente com problemas biomédicos. Potter (1988) reagiu, criticando o reducionismo do significado de bioética, resgatando a sua origem ecológica e reportando-se ao legado de Aldo Leopold que foi o grande ambientalista dos Estados Unidos (Leopold, 1970). Hoje, as questões ecológicas fazem parte da configuração da bioética e, por ela ter surgido na preocupação com as interfaces entre tecnologia e vida, sua contribuição é considerada indispensável nas discussões atuais sobre a crise ambiental.
Mas por que essa dimensão ecológica é importante para a identidade da bioética? Não pode ser apenas porque Potter, ao criar a palavra, lhe deu um significado mais amplo de cunho ambiental. A importância deve estar ligada ao próprio foco epistemológico da bioética: implicações éticas do binômio tecnologias e vida. Os efeitos desse binômio são experimentados no ambiente, provocando consequências sobre os seres humanos e todos os seres vivos. Mesmo os problemas éticos relativos à saúde humana não podem ser pensados sem levar em consideração contextos e ambientes em que surgem e acontecem os processos de saúde e doença. As biotecnologias transformaram radicalmente o meio de reprodução social da vida e da saúde. Por isso, sempre mais se impõe uma visão ecológica da própria saúde, obrigando a aproximar os temas clínicos e ambientais.
A máxima expressão das consequências do binômio tecnologias e vida sobre o meio é a crise ecológica com seus efeitos sobre as mudanças climáticas e sobre a sustentabilidade ambiental do planeta. Essa crise configura-se como o principal desafio que a humanidade terá que enfrentar nas próximas décadas para assegurar a sobrevivência do conjunto da humanidade e a preservação da maioria dos seres vivos, não só animaissuperiores, mas também micro-organismos essenciais para a sustentabilidade da biosfera. A sociedade está apenas acordando para esse pesadelo que ela própria criou. A bioética pode desempenhar papel importante nesse despertar para a consciência dos efeitos do binômio tecnologia e vida.
A ética que pode suscitar essa consciência assume um rosto ecocêntrico, porque se trata de dar-se conta das interdependências do ambiente de como a vida é tecida por uma teia de inter- -relações e como essa constatação torna-se um princípio ético. Não existe sustentabilidade sem esse pressuposto moral que foi completamente esquecido pelo modo como se organiza hoje a sociedade. Dois fenômenos sociais típicos do contexto atual, já naturalizados e concebidos como o parte do senso comum, são a economia baseada no consumo, esquecida da finitude dos recursos naturais, e a agricultura totalmente dependente da química, sem nenhuma atenção para suas interfaces com a natureza. As pessoas engajadas nesses processos não conseguem ver que é possível outra economia e outra agricultura e muito menos tomar consciência de que o modo como as duas são pensadas e organizadas estão entre as principais causas da atual crise ambiental.
Neste caso, é importante que a bioética ambiental, assuma a perspectiva da hermenêutica que questiona criticamente os pressupostos e as teorias e práticas, tidas como científicas, naturalizadas como senso comum, sem nenhum espírito crítico (Santos, 1989). Aqui, hermenêutica significa “assumir a tarefa de desfazer o estado de interpretação herdado e dominante, de manifestar os motivos ocultos, de destapar as tendências e as vias de interpretação não sempre explicitadas e de remontar-se às fontes originárias que motivam toda explicação por meio de uma estratégia de desmontagem” (Heidegger, 2002, 51). As discussões suscitadas por uma bioética hermenêutica, em chave ecocentrada, podem provocar um choque crítico questionador do senso comum naturalizado, despertando para uma sensibilidade ecológica e consciência ética das consequências do binômio tecnologia e vida na economia e na agricultura.
Neste ponto é importante chegar a uma definição adequada da crise ambiental que seja coerente com a lógica da sustentabilidade ambiental, isto é, que seja uma compreensão da crise que tenha como referência as inter-relações e interdependências ambientais. Nesse sentido, pode-se afirmar que a crise ecológica é o resultado do drástico desajuste entre os processos cíclicos, conservadores e auto recorrentes da biosfera e os processos lineares e inovadores que buscam a maximização a curto prazo dos benefícios humanos da tecnosfera. Em outras palavras, a lógica das interdependências ambientais da reprodução da vida está em completa contradição com a lógica fragmentária e independente do funcionamento da técnica. A contradição entre as duas lógicas torna o ambiente insustentável com repercussões para a sobrevivência de muitos seres vivos e humanos. Essa compreensão da crise é importante para encontrar uma resposta: o ajuste e a harmonização dos processos tecnológicos da sociedade com os processos vitais da natureza. Daí a importância de assumir uma perspectiva ecocentrada para pensar e discutir a crise ambiental e apontar soluções para a mudança climática global.
Existem duas soluções que são inadequadas, porque não tomam como referência as interdependências socioambientais. Uma primeira está centrada nos interesses humanos com uma perspectiva antropocêntrica, defendendo que os humanos sempre encontrarão uma solução técnica para todos os seus problemas. Caracteriza-se por um otimismo tecnológico que descuida o outro polo do binômio, a vida com suas dinâmicas próprias. Quanto ao aspecto econômico, busca-se a eco eficiência expressa no conceito de desenvolvimento sustentável, mas, como o anterior, desconsidera o outro polo: as interdependências vitais do ambiente. Esse caminho que tem como foco o bem-estar humano é insuficiente porque desabona os interesses ambientais dos demais seres vivos. Uma solução que pensa o ser humano fora do ambiente natural como não fazendo parte da natureza é um caminho suicida, porque o ser humano necessita dos serviços prestados pela natureza, a começar pelo oxigênio e a própria temperatura ambiente.
Outro caminho de solução concentra-se nos interesses dos seres vivos com um enfoque biocêntrico de culto ao silvestre. Aqui o acento está no outro lado do binômio: a vida. Mas o problema dessa solução é que pensa a vida separada de suas interdependências vitais e sociais. Por exemplo, por um lado, defende o direito dos animais, principalmente aqueles de convívio humano, antropomorfizando-os e considerando-os como seres individuais fora de suas inter-relações ambientais. Por outro lado, defende a luta pela preservação de certos ambientes naturais sem interferência humana, museificando a natureza pensada à parte da sociedade. Esse caminho também não é adequado, porque não consegue pensar a vida como uma teia de relações interdependentes e preserva certos ambientes como museus naturais isolados em meio a um deserto de tecnificação sem vida, não tendo a coragem de questionar globalmente o sistema.
O único caminho adequado é assumir o modo como a natureza funciona de modo ecocentrado como uma rede de interdependências ambientais. Por isso, o ponto de referência ético não pode ser as vantagens dos humanos nem mesmo as dos seres vivos, concebidos isoladamente e independentes de seu ambiente, mas os interesses da teia de inter-relações de um ecosistema, onde são gestadas as condições vitais de sobrevivência e de desenvolvimento de qualquer ser vivo, inclusive o ser humano. Nesse sentido, as constantes ecológicas de interdependência de um ecossistema tornam-se diretrizes éticas para avaliar intervenções humanas no meio ambiente. Isso significa também que não se trata de conceber uma natureza intocada e museificada, porque os humanos fazem parte dos ecossistemas, onde sempre viveram em harmonia com as dinâmicas vitais e ambientais do seu meio ambiente.
O problema da crise ambiental começou em tempos recentes, quando os seres humanos não se assumiram mais como um elo nessa teia de interdependências e a sua ganância de exploração da natureza excedeu todos os limites, colocando em perigo a sua própria sobrevivência. Os indivíduos modernos tornaram-se analfabetos ecológicos, porque encaram o ambiente de modo fragmentado e isolado, desconhecendo os princípios ecológicos do funcionamento da natureza (Capra 2002, 2006). Os povos ancestrais e os pobres continuam mantendo esse conhecimento, porque dependem mais diretamente dos serviços da natureza para sobreviver. Por isso, suas lutas contra megaprojetos mineradores, petroleiros ou agrícolas que querem introduzir-se e destruir seus ecossistemas ancestrais de reprodução social da vida são autênticos movimentos ambientalistas, embora não sejam considerados como tal, porque defendem a preservação da teia de interdependências socioambientais e manifestam uma visão ecocêntrica de valoração da natureza como ambiente de sobrevivência, e não como puro recurso natural para uso utilitarista (Alier, 2012).
Essas reflexões sobre a crise ambiental demonstram que só é possível alcançar a almejada sustentabilidade socioambiental com uma visão ecocêntrica, porque o critério para definir se algo é sustentável, ou não, são as interdependências ecossistêmicas. Por isso, para restabelecer o desenvolvimento sustentável é necessário pensar as ações e intervenções no ambiente a partir o paradigma de teia de inter-relações ecológicas. Esse padrão ecológico precisa inspirar a discussão sobre o modelo atual de economia e agricultura vigentes na sociedade. Aqui aparece o primeiro princípio da sustentabilidade socioambiental, o ecocentrismo, significando que, na natureza, tudo está inter-relacionado e, por isso, tudo é interdependente.
A crise ambiental obriga a começar a discutir que tipo de economia queremos, porque ali se encontra o núcleo do problema. Temos um modelo de economia em que a natureza não aparece como limite, mas parte da visão ingênua da abundância dos recursos naturais, colocados à disposição da engenhosidade e do interesse do ser humano, da ilusão de que a natureza é um subsistema da economia, quando é o contrário.
Tendo presente essa questão, a Conferencia Rio+20 das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável de 2012, no Rio de Janeiro propôs o modelo da economia verde. O documento afirma que “a economia verde, no contexto do desenvolvimento sustentável e da erradicação da pobreza, é uma das importantes ferramentas, disponíveis para alcançar o desenvolvimento sustentável, que poderia oferecer opções para decisão política, sem ser um conjunto rígido de regras. Ressaltamos que a economia verde deve contribuir para a erradicação da pobreza e para o crescimento econômico sustentável, reforçar a inclusão social, melhorando o bem-estar humano, e criar oportunidades de emprego e trabalho digno para todos, mantendo o funcionamento saudável dos ecossistemas da Terra” (ONU, 2012, n. 56).
A amplidão e a falta de clareza sobre o que significa o substantivo economia e o adjetivo verde, torna a proposta inócua, respondendo apenas a propósitos propagandísticos de marketing. A revisão da compreensão de desenvolvimento sustentável por meio da proposta da economia verde agrega o aspecto da erradicação da pobreza como a dimensão social da proposta. Mas se não é claro de que economia se está falando, e o que significa a adjetivação verde, ela não irá erradicar, num passo de mágica, a pobreza. Com essa proposta vaga e imprecisa, todos poderão dizer que desenvolvem uma economia verde. Por isso, o documento da Cúpula dos Povos critica a proposta, afirmando que “A atual fase financeira do capitalismo se expressa através da chamada economia verde e de velhos e novos mecanismos, tais como o aprofundamento do endividamento público-privado, o super estímulo ao consumo, a apropriação e concentração das novas tecnologias, os mercados de carbono e biodiversidade, a grilagem e a estrangeirização de terras e as parcerias público-privadas, entre outros” (Cúpula dos Povos, 2012). A proposta da economia verde responde apenas a motivos ideológicos para desviar a atenção do verdadeiro problema da sustentabilidade, as interdependências socioambientais do desenvolvimento.
A solução não é a economia verde, um dispositivo de desvio e de distração do verdadeiro problema: o respeito às inter-relações ecológicas do ambiente em que acontecem os processos econômicos. Por isso é necessário aproximar a economia da ecologia, pois ambas têm o mesmo sufixo “eco” que vem de oikos que significa casa e ambiente. Seria possível uma economia ecológica?
Essa é a proposta do economista romeno-americano Nicholas Georgescu-Roegen no seu livro The Entropy Law and the Economic Process, publicado em 1971, em que propõe uma aproximação entre os processos econômicos e os processos bio-ecológicos, pela constituição de uma economia ecológica. O autor critica a economia clássica em voga por estar baseada em processos mecanicistas da física newtoniana, há muito tempo superada, advogando a necessidade de repensar a economia nos moldes da biologia e da ecologia. O princípio básico desse modelo econômico seria assumir a própria natureza como limite aos processos produtivos. Para o atual sistema econômico, a natureza não é um limite, porque ela é pensada apenas como estoque de recursos. A natureza não pode ser reduzida aos recursos naturais, como sendo apenas mais um elemento a mais ao lado de outros (como capital e trabalho) que constituem os componentes do processo econômico. O sistema amplo que engloba a totalidade é a natureza e não a economia, como pensam os economistas a partir do mercado. A economia é um subsistema do grande ecossistema natureza, cujos serviços possibilitam a vida e todo o resto, inclusive a economia (Georgescu-Roegen, 1971, 2012).
O ponto de partida da economia ecológica, é a lei da entropia, um dos princípios básicos do funcionamento da vida: gasto de energia. Todo ser vivo está aberto ao ambiente de onde retira energia pela alimentação e respiração, porque sempre está gastando energia pela eliminação de calor. Se os processos econômicos precisam ser pensados como processos biológicos, não mecânicos, então eles também sofrem a lei da entropia, isto é, os processos produtivos gastam energia e materiais para seu funcionamento, mas os cálculos financeiros nunca incluem esses gastos entrópicos de energia nos preços do produto terminal. Valha como exemplo, o preço de um frango, geralmente muito barato e acessível a todos, nesse preço, contudo, não está incluído tudo o que foi gasto para o crescimento, o abate, o uso de muita água na limpeza do frango e o seu transporte. Portanto, o preço não contempla o verdadeiro gasto dispensado para que o frango esteja à disposição no supermercado. O preço eliminou a entropia do processo produtivo, mas a entropia existe e o meio ambiente está pagando a conta do que não foi orçado no preço. Os gastos e os danos ambientais, também chamados de externalidades da produção, não estão incluídos nos preços, isto é, foram maquiados, porque eles existem e alguém está pagando por eles. Essa entropia acontece em qualquer processo produtivo. Por isso, Georgescu-Roegen defende que a economia precisa fazer as contas com a entropia, isto é, o cálculo precisa incluir todos os gastos de energia e materiais, necessários ao processo produtivo, não escondendo essas externalidades com um preço baixo que não corresponde ao que foi gasto, porque o meio ambiente está assumindo esse gasto. Por essa consideração sobre a entropia nos processos econômicos é possível ver a radicalidade e a pertinência da proposta de Georgescu-Roegen para a questão ambiental. Não haverá verdadeira solução para a crise ambiental sem uma transformação radical no modelo econômico que considere a natureza como um limite aos processos econômicos e que inclua a entropia nos cálculos dos processos produtivos (Georgescu-Roegen, 1971, 2012).
O modelo vigente de economia está baseado no consumismo, enquanto ativador dos processos econômicos, pois produz artigos de consumo que, pela regra da obsolescência planejada e percebida, tornam-se obsoletos o mais rápido possível, indo para o lixo, para que o consumidor volte, em pouco tempo, a comprar um novo produto, fazendo assim girar a economia e possibilitando a mais valia e a empregabilidade (Gultinan, 2009; Cooper, 2004). Isso significa mais extorsão de recursos naturais, que são finitos, e mais produção inevitável e acumulativa de lixo. Mas poucos tem coragem de questionar essa equação insustentável de economia predatória e esse consumismo desenfreado, porque ela já foi naturalizada pelo senso comum, impedindo a necessária visão crítica. Quando essa opinião generalizada se torna ciência econômica é necessário romper com senso comum naturalizado por meio da hermenêutica crítica dos seus pressupostos. Esse é o papel de uma bioética que reflete criticamente sobre a crise ambiental.
A simbiose entre processos econômicos e de consumo é a responsável pela atual crise ambiental, por não ter em conta as interdependências socioambientais desses processos entrópicos que gastam recursos e energia e produzem descartes e danos que não são contabilizados. Essa é a grande contribuição da economia ecológica que questiona a maquiagem de gastos e externalidades dos processos econômicos, realizada pelo modelo clássico vigente (Cechin, 2010). Aqui temos o segundo princípio indispensável para uma sustentabilidade socioambiental, a entropia, pelo qual os processos econômicos não são entendidos como processos mecânicos lineares, mas processos biológicos cíclicos de gasto de energia e materiais e de eliminação de descartes para que a produção seja possível. Assim o modelo econômico só será ambientalmente sustentável se levar em consideração e fizer as contas da entropia dos seus processos produtivos.
A agricultura poucas vezes é relacionada com o problema ambiental, porque se tem a ilusão de estar frente a um ambiente verde. Essa visão foi veiculada pela assim chamada revolução verde que transformou completamente o modelo tradicional de agricultura pela introdução de diferentes agentes químicos para correção de solo, adubação, eliminação de pragas e ervas daninhas. Essa quimificação da agricultura foi uma consequência da reorientação da pesquisa de armas químicas a serviço da segunda guerra mundial, principalmente na Alemanha, para fins agrícolas. Os objetivos de morte passaram da guerra para a agricultura, ou melhor, a perspectiva de guerra foi introduzida na própria agricultura, presente nas próprias designações dos produtos químicos utilizados: pesticidas, fungicidas, herbicidas, tudo lembrando morte, apesar de que hoje, por motivos de marketing político, se passou a empregar a palavra genérica de defensivos agrícolas, mas que não deixam de ser agrotóxicos biocidas, isto é, assassinos da vida (Lutzenberger, 2012).
A defesa da revolução verde possibilitou um aumento exponencial da produção de alimentos, o que certamente é verdade, mas a que custo sócio ambiental para a teia da vida. Esse aumento foi justificado porque abria caminhos para a superação da fome. Se o primeiro argumento pode ser verdade, o segundo é pura ideologia, porque o que aconteceu foi justamente o contrário, já que a revolução verde destruiu o modelo tradicional de agricultura que alimentava milhões de pessoas no campo e está provocando fome nas regiões rurais, porque desestruturou costumes e práticas seculares, eliminando a autonomia dos pequenos agricultores no manejo das sementes. Na realidade, o que aconteceu é que a revolução verde e suas sucedâneas de aperfeiçoamento provocaram uma imensa concentração de terras, sementes e outros elementos utilizados na agricultura nas mãos de algumas grandes empresas de biotecnologia e de agronegócio a serviço da exportação de cereais para o primeiro mundo e da geração de commodities agrícolas. Essa é a realidade; o resto são justificativas ideológicas que devem ser questionadas, quando algo se torna senso comum, onde não existe mais criticidade científica (Lutzenberger, 2012).
Quem já caminhou por entre plantações de soja, com um horizonte a perder de vista, pode confirmar de que se trata de um deserto verde, onde não se escuta nenhum pássaro ou grilo, não existem insetos no ar nem micro-organismos no solo, reina o completo silêncio, tudo está morto, como já constatou Carson na década de sessenta em seu célebre livro Silent Spring (1962), considerada a primeira denúncia do uso de agrotóxicos, principalmente do TNT, com grande repercussão nos Estados Unidos. Foi a leitura desse livro que mudou completamente a trajetória de vida do grande ambientalista brasileiro José Lutzenberger, nos inícios dos anos setenta e que, de agrônomo vendedor de agrotóxicos a serviço da indústria química alemã BASF, se tornou, com profundo conhecimento de causa, um crítico ferrenho do uso de pesticidas na agricultura e um defensor da agricultura ecológica (Pereira 2016). Seus posicionamentos e argumentos científicos ajudam a questionar criticamente o senso comum naturalizado de muitos agrônomos que promovem e divulgam o dogma da quimificação biocida da agricultura.
Assim como a economia, a agricultura ecológica precisa tornar-se uma das grandes preocupações do movimento ecologista e da bioética ambiental, pelas consequências e efeitos da agricultura moderna sobre o meio ambiente. O modo de funcionamento químico dessa agricultura é uma das grandes causas de aprofundamento do problema ambiental porque elimina os agentes - pássaros, plantas, insetos e micro-organismos do solo – responsáveis pelo equilíbrio homeostático dos ecossistemas. Todos esses agentes são considerados, por essa agricultura, como daninhos, porque atacam ou atrapalham o desenvolvimento das plantações, mas muitos agrônomos não se perguntam por que isso acontece, simplesmente propõem aos agricultores a aplicação de pesticidas e herbicidas. Quando uma planta é atacada por fungos e pragam expressa um sintoma de que ela está doente por insuficiênciasede nutrientes queodeveriam estar no solo. Aplicando agrotóxicos, a praga torna-se cada vez mais resistente, não resolvendo o problema. Acontece o mesmo na medicina quando se atacm apenas os sintomas e não a causa do problema, a doença funcional no sistema endocrinológico e imunológico do corpo do enfermo. Assim também na agricultura: a causa da doença da planta está no seu desequilíbrio metabólico que não encontra no solo as necessárias substâncias nutricionais e, por isso, o problema a resolver não está nos sintomas que são as pragas. Essa é a explicação científica da teoria da trofobiose (Lutzenberger, 1984; Chaboussou, 1987; Primavesi, 2002).
A trofobiose defende uma estreita dependência entre o estado nutricional da planta e a praga que toma conta, significando que o ataque acontece “na medida em que seu estado bioquímico, determinado pela natureza e pelo teor em substâncias solúveis nutricionais, corresponda às exigências tróficas do parasita em questão” (Chaboussou, 1987, 76). Segundo Chaboussou, a planta equilibrada nutritivamente não é atacada pelas pragas, porque não realiza a proteólise, isto é, a produção de açucares e aminoácidos, atraentes para as pragas, mas apenas tem a capacidade para a proteossíntese, isto é, a produção de proteínas que não interessam às pragas. O estado de proteólise torna a planta sensível ao ataque, enquanto que o estado de proteossíntese cria a condição de resistência (Chaboussou, 1987). Esses estados dependem das substâncias que a planta encontra no solo que pode ser corrigido, por exemplo, como defende Primavesi (2002), pela influência benéfica do manganês e do cobre. Por isso, esses autores defendem correções equilibradas como medida preventiva.
A agricultura moderna drogada pelos agrotóxicos tem dificuldade de captar essa teoria, pois, para ela, o solo é um simples elemento de fixação da planta, não compreendendo as íntimas interdependências entre a planta e o solo. Solos férteis detém as substâncias nutricionais necessárias para a planta que não sofre o ataque de parasitas. A agricultura moderna parece sempre menos depender do solo, reduzindo a produção agrícola a um tipo de hidroponia artificial quimificada. Por isso, Lutzenberger e outros defendem uma agricultura orgânica ecológica baseada nas interações entre as plantas, o solo e o ambiente através da correção e adubação natural do solo para ativar os micro-organismos necessários à fertilidade nutricional da terra e a plantação de biodiversidade agrícola contígua, tal como acontece na natureza, mas não nas imensas extensões de apenas um tipo de planta, produtora de desequilíbrio ambiental (Gliessmann, 2001; Vilanova, Silva Junior, 2009; Lutzenberger, 2012).
Assim chegamos ao terceiro princípio da sustentabilidade socioambiental, a trofobiose, aplicado à agricultura, pela qual existe uma interdependência sistêmica entre planta, ambiente e solo, responsável pela sanidade da planta e definidor da causa do seu desequilíbrio. Esse princípio pode ser também designado num sentido ampliado de homeostase, porque aponta para o equilíbrio dos ecossistemas como sistemas de interdependências vitais que criam as condições e tornam possível a autopoiese dos seres vivos, isto é, a capacidade de se auto refazer a partir de recursos e dispositivos do seu ambiente.
O desafio da crise ambiental é encontrar caminhos de sustentabilidade socioambiental. Isso significa soluções que respeitem, por um lado, os ritmos ecológicos da natureza e, por outro, que sejam socialmente adequadas no alcance de uma justiça ambiental. Mas é necessário dizer que não se chega à justiça sacrificando a natureza. Dois âmbitos nucleares da sociedade atual são a chave do problema e o nó da questão: a economia e a agricultura. Para a primeira, o funcionamento do sistema está baseado no consumo (obsolescência programada e percebida) como principal ativador dos processos econômicos. Para a segunda, o modelo funciona na base da química (adubos, pesticidas, herbicidas) como coadjuvante central dos processos de produção agrícola.
O problema é que a equação economia e consumismo, por um lado, e agricultura e química, por outro, são ambientalmente suicidas, devido à finitude dos recursos naturais e a produção exponencial de lixo, presente nos processos econômicos, e à dinâmica mortífera para a teia da vida, característica do modo de produção agrícola. Por isso é necessário propor princípios indispensáveis para a construção de uma sustentabilidade socioambiental.
Antes de tudo é preciso ter presente o princípio do ecocentrismo, o imperativo básico de levar sempre em conta, em qualquer intervenção humana na natureza, as interdependências ambientais do ecossistema, porque tudo nele está inter-relacionado, formando uma teia interdependente.
Em segundo lugar, o princípio da entropia que obriga considerar o gasto de energia e materiais e a eliminação de descartes no ambiente, como condicionamentos transparentes em qualquer processo produtivo com ações de equacionamento e diminuiçãoada dinâmica entrópica.
Por fim, o princípio da trofobiose/homeostase que aponta para necessidade de observar o funcionamento da natureza em seus processos de auto-organização e autocorreção para o equilíbrio da teia da vida, quando se pretende, por exemplo, introduzir qualquer ser vivo num ambiente, tendo presente como esse ser introduzido vai interagir com os outros seres do meio e, tratando-se de plantas, a sua interação metabólica com o solo como sistema de onde retira suas substâncias nutricionais e também sua convivência contígua com outros vegetais permanentes e plantados, para que se constitua uma rede sustentável de interdependências. Extensões imensas de uma única espécie vegetal não são ecologicamente adequadas, porque impedem a busca do equilíbrio homeostático.
Portanto, a busca da sustentabilidade ambiental depende de um reaprendizado ambiental de como funciona a natureza. Os seres humanos tornaram-se analfabetos ecológicos, porque já não conhecem os princípios básicos do equilíbrio ecossistêmico do seu contexto de sobrevivência e convivência social. Os efeitos desse desconhecimento estão sendo experimentados a duras penas nas consequências destrutivas da crise ambiental e do aquecimento climático global com os quais a humanidade terá que se confrontar nesses próximos tempos.