Quem pode prever o futuro a longo prazo? Há institutos especializados que se dedicam a este trabalho, mas sabemos que as suas previsões se baseiam num estudo do presente, cujas tendências são projectadas para a frente, sem que descobertas futuras totalmente inesperadas sejam tomadas em linha de conta. A realidade do imprevisível é, por definição imprevisível. É possível contudo ter acesso a muitos dados previsíveis na sua globalidade, mas imprevisíveis no pormenor dos seus efeitos sobre a nossa vida quotidiana. Assim, o fim da era do combustível fóssil, o progresso no conhecimento das nanotecnologias, um melhor conhecimento do funcionamento neuronal são exemplos de progressos previsíveis. Todavia no passado, sempre tiveram lugar descobertas que revolucionaram a face do mundo e que teriam escapado aos melhores institutos orientados para a futurologia. Assim, nos anos quarenta do século passado, quem, salvo os amadores de Jules Verne, podia ter previsto o aparecimento de computadores pessoais ou a viagem até à lua? E, perguntar-se-á, quais serão os desafios para a bioética de amanhã? O que nos ajuda nesta tarefa é que o amanhã não está assim tão longe como o fim do século; por isso não é tão insensato projectar e lançar pelo menos pequenas pontes que já nos permitam atravessar o futuro próximo.
No Portugal atual como em todos os países levanta-se, para os especialistas de ética, uma questão transversal, de natureza filosófica. Esta questão acompanha uma grande parte das deliberações sobre problemas bioéticos da vida quotidiana; quais são e onde estão os limites além dos quais entraríamos na zona cinzenta ou mesmo vermelha da desumanização? A teoria dos limites afeta de modo singular todas as ciências. Aqui também, no campo da bioética, será possível determinar a priori os limites da intervenção sobre o ser humano? Será que tudo pode ser investigado? Quais as experiências que se tornam propriamente imorais?
Estas questões evocam imediatamente as práticas dos campos de concentração nazis e, evidentemente, concordamos com a posição de limites éticos à acção sobre o ser humano. Ainda hoje, Associações nacionais e internacionais militam, por exemplo, pela abolição da tortura. Aliás, a Declaração universal dos Direitos do Homem de 1948, assim como documentos ulteriores, dão uma resposta simples e definitiva à nossa questão: sim, existe um limite ético que separa a promoção da dignidade humana e a sua degradação. Pode-se portanto tirar a conclusão geral de que existem limites primordialmente éticos no relacionamento intersubjetivo. Contudo a pertinência desta conclusão não resolve senão muito parcialmente o problema dos limites éticos da acção sobre o corpo e a mente humana. Do mesmo modo, a separação entre o bem a fazer e o mal a evitar, por evidente que seja em teoria, não deixa de ser complexa na realidade concreta, tanto política como ética. Por exemplo, do ponto de vista político, os limites que já não fazem da guerra um ato de justiça podem ser teoricamente claros, mas será que a luta contra o terrorismo não levará ao recuo do direito à privacidade e de outros direitos fundamentais? Mas é preciso limitarmo-nos à questão bioética que actualmente se enuncia nos termos seguintes: até que ponto a natureza do ser humano se torna ou é mesmo portadora de uma norma ética a respeitar? A própria questão exige algumas palavras de explicação.
O simples fato de falar da natureza humana constitui já um problema. O conceito de natureza é por si mesmo sobredeterminado. Existe a natureza enquanto cosmos, mundo cósmico, intersideral, planetário ou mineral. A natureza é também bios, vida biológica natural; o mundo vegetal e animal constitui assim a natureza que nos rodeia. Mas o corpo humano destaca-se no meio dos seres biológicos; considerar o ser humano como um ser de natureza provém então do reconhecimento do seu lugar específico no mundo dos seres vivos; assim compreendida, a natureza biológica do homem é sôma, corpo. Enfim, o conceito filosófico de natureza faz dela um equivalente do conceito de essência ou quididade. Uma cascata de ambiguidades surge do entrecruzamento destes sentidos do conceito de natureza, principalmente entre o seu terceiro e quarto sentido, entre o corpo biológico e a essência do ser humano. Ao falarmos da natureza humana, é possível entender ou o que é o ser humano por natureza, ou o que decorre apenas da sua estrutura biológica. Portanto, quando se interroga as relações entre ética e natureza humana, é necessário, sob pena de malentendido, acrescentar se a natureza se limita ao corpo humano ou abrange a essência do ser humano, a qual inclui a dimensão de racionalidade.
Com efeito, não é do corpo que surge a norma moral, mas do ser humano que, pelo uso da sua razão, elabora e assume os princípios éticos do seu comportamento. A mediação entre o corpo e a ética reside portanto no uso da razão, a qual se apoia de modo privilegiado no conhecimento do corpo. Todavia, para descobrir a melhor conduta ética, a reflexão ética irá refletir não apenas no corpo, mas, entre outros campos, no ambiente, nas circunstâncias que tecem a rede do meio físico, espácio-temporal e cultural no qual o ser humano vive, assim como no sentido global do agir humano. A questão complica-se contudo quando se pergunta até onde se pode intervir sobre o corpo humano, salvaguardando-se o respeito ético que lhe é devido.
Do ponto de vista filosófico a fenomenologia ensinou-nos a superar a compreensão do ser humano baseada numa forma de dualismo antropológico, corpo-alma ou corpo e consciência, ou ainda matéria e espírito. O ponto de partida que deve guiar o pensamento é a unidade, unidade humana que, porém, comporta diferenças intrínsecas exigindo métodos distintos de abordagem e de análise. Não sendo apenas corpo, embora sendo plenamente consciência corpórea, o ser humano, para a sua auto-realização ética, deve agir em conformidade com aquilo que ele é, no respeito pela integralidade do seu ser. Este princípio ético fundamental significa que a realização do ser humano, se não respeita o que ele é, levará a anomalias que cedo ou tarde se virarão conta ele próprio. Por exemplo, se existem condutas humanas que parecem animalescas, constituindo-se como perversões (termo que tem uma conotação psicológica antes de ser moral, sendo a perversão um desvio, um caminho não adequado), há outras que parecem guiadas por um ideal sobrehumano, do ponto de vista quer físico quer socio-psicológico; em geral tais atitudes levam à hybris, ao excesso que pode provocar a destruição física ou psicológica do seu agente. Tal seria por exemplo o fato de assumir riscos desrazoáveis. Mas será possível determinar à partida o limiar que constitui o limite a não transgredir? Para quem admite o princípio geral da bioética segundo o qual nem tudo aquilo que é cientificamente possível é eticamente recomendável, e se se quiser aplicar este princípio aos tratamentos que incidem no corpo, a questão dos limites éticos de uma intervenção levanta-se relativamente cedo.
Todavia é impossível tratar dos limites da acção sem evocar a liberdade humana, cuja abordagem é muitas vezes destorcida. A liberdade de escolha ou livre-arbítrio não é senão o primeiro passo da liberdade; mais importante é o caminho que se percorre para realizar o projeto inscrito na decisão e que, após os diferentes passos da sua realização, mede o percurso feito; tal é efetivamente o sentido fundamental da liberdade. Deste modo, a liberdade confere ao ser humano a sua autorealização efetiva (que a filosofia hegeliana condensava no conceito de Wirklichkeit). Ora, nas questões de bioética, o peso dado ao princípio de autonomia pessoal em matéria de escolha parece muitas vezes limitar a liberdade à liberdade de escolha, como se na escolha se jogasse a essência ou o essencial da liberdade. Noutros termos, a liberdade bioética é entendida, de modo restritivo, como garantia da autonomia no poder de decisão.
Com certeza, a autonomia implica a ausência de coacção, o que exige o respeito pelos outros das decisões livremente assumidas por cada um. Mas o respeito pela liberdade de escolha ainda não diz nada sobre a qualidade ética do conteúdo da decisão. É aqui que surge, no campo da bioética, uma das maiores dificuldades: quando se trata de avaliar eticamente o conteúdo de uma decisão a tomar ou já tomada por uma multiplicidade de decisores, estamos num registo ético que evidentemente pressupõe a liberdade de escolha, mas que deve medir as consequências não apenas individuais, mas também sociais e políticas dos projetos aprovados. O problema dos limites enuncia-se então em termos diferentes: até que ponto se pode proibir um determinado comportamento que viola a decisão ética tomada por um determinado grupo –Comissão ética de Sábios, Comissão Ética Hospitalar, Conselho Nacional de Ética – sob o pretexto de que este comportamento é considerado pouco ético ou inaceitável?
Não se pode contudo esquecer que a ética produz apenas pareceres e não normas taxativas; compete às instâncias revestidas de autoridade social (por exemplo, um Conselho directivo de um Hospital, os órgãos do poder político) promulgar directivas, decretos ou leis, cuja infracção é devidamente sancionada. Contudo, antes de chegar ao momento da decisão política, a bioética deveria abrir o espaço a um largo debate, não apenas limitado a alguns Comités de sábios. A questão dos limites formula-se então de modo diferente: até onde se pode ou se deve deixar à autonomia individual o monopólio das decisões a tomar em determinados campos de atividade que interferem diretamente com a vida humana? Esta questão está intimamente ligada à primeira, que merece ser repetida: em que medida o corpo humano, enquanto elemento biológico natural – que por si próprio não é fonte de norma moral –, intervém na elaboração, racional ou pelo menos razoável, dos princípios éticos e das normas morais, cuja missão consiste em orientar as condutas humanas concretas? Em termos simples, quais são as formas do respeito devido à integridade do corpo humano sob pena de exceder os limites daquilo que é considerado como eticamente aceitável?
Há exemplos tão simples que não levantam dúvidas; um ato cirúrgico destinado a restaurar a maior saúde do corpo constitui em geral uma forma de agressão; contudo justifica-se pelo melhor bem de quem é assim tratado. Também nos cuidados em fim de vida, sabemos que existem limites que marcam o fim das boas práticas médicas, sob pena de cair no grave defeito da obstinação terapêutica (às vezes chamada, por analogia à terminologia francófona, encarniçamento terapêutico). Estes exemplos são, pelo menos em princípio, suficientemente simples para não levantar grandes objeções. Outros colocam questões muito complexas.
É a situação do Portugal dos últimos doze anos que servirá de base de apoio para esta reflexão. Vários campos de discussão atravessaram a sociedade portuguesa no período retido. Provavelmente como em muitos países são as questões ditas fracturantes que suscitam as maiores dificuldades, as mais fortes oposições sociais, dividindo a sociedade em partes quase iguais. Nelas se encontram as questões que incidem no princípio e no fim da vida humana.
De fato existe, em geral, uma sequência cronológica no modo como aparecem os problemas: no princípio, uma questão surge face a determinados atos praticados quando ainda não há enquadramento jurídico. Em Portugal esse foi o caso com o recurso à PMA, no período que precedeu a promulgação da lei em 20061.
Sobre a PMA, o Conselho Nacional de Ética português (CNECV) tinha-se pronunciado três vezes antes de 2006, mas com diferentes pareceres dissonantes. É assim que várias conclusões do Parecer de 2004 contrariavam as propostas do primeiro Parecer sobre esta matéria, redigido em 1993. Como compreender esta evolução, que leva a admitir como «éticos» comportamentos precedentemente considerados como desaconselháveis? Será isso o resultado de uma evolução das mentalidades, ou o reflexo do fator político que intervém na escolha dos membros dos diferentes mandatos do mesmo Conselho chamados a pronunciarem-se, ou ainda o sinal de uma nova, melhor ou pior compreensão da ética? Por exemplo, tal como em outros países, colocou-se o problema da fecundação in vitro heteróloga (isto é, não realizada com as células germinais do casal beneficiário, mas com recurso a um banco de esperma ou, mais recentemente, a um banco de ovócitos; também heteróloga é considerada a inseminação de mulheres solteiras). O Parecer do CNECV de 1993 (3/ CNECV/93, assim como 23 (CNECV/97) considerou-a como não respeitando o carácter subsidiário da PMA. Com efeito, a PMA foi inicialmente aceite apenas enquanto ajuda médica à infertilidade; ora, o recurso a dadores de células germinais masculinas ou femininas não consiste em tratar medicamente a infertilidade, mas contorna-a, introduzindo uma forte disparidade física e psicológica entre os membros do casal. Contudo seguindo a tendência de legislações europeias os Pareceres ulteriores2 do Conselho Nacional de Ética português aprovaram (ou deixaram sem resposta, como no Parecer de 2016) o princípio da fecundação heteróloga. Será isso o reflexo de um laxismo ético ou de uma permissividade em nome de uma compreensão cada vez mais liberal ou libertária da própria liberdade? Provavelmente as duas coisas ao mesmo tempo.
Um outro fenómeno vem enxertar-se em muitos problemas bioéticos, principalmente nos que dividem a sociedade. Podemos traduzir a slippery slope como a «rampa deslizante», metáfora cujo sentido se aproxima da outra metáfora, a «estratégia dos pequenos passos». A realidade que tais metáforas descrevem surge muitas vezes no decurso do debate social com conotação política. Por exemplo, uma parte dos partidários da total liberalização da PMA, em todas as suas formas ditas heterólogas, sabia que a população ainda não estava pronta, numa determinada altura, para aceitar todas as práticas conexas ligadas à PMA, entre as quais a gravidez de substituição ou o acesso de homossexuais à PMA. O projecto então consistiu e consiste em tentar fazer aprovar passo a passo cada medida, anunciando mesmo um timing para propostas legislativas futuras na altura da recusa de uma delas.
O resultado de tal estratégia conduziu à dissolução do modelo clássico da reprodução humana. Para os partidários deste «alargamento» tratou-se de uma vitória, que tende para deixar a cada pessoa a escolha do modelo reprodutivo. Será isso uma forma de progresso ético?
Verificamos que, no slippery slope da PMA, a porta se abriu quando se quis ultrapassar a barreira que o princípio da subsidiariedade representava. Com efeito, a decisão de reservar a PMA por razões exclusivamente médicas a casais que se encontravam numa situação de infecundidade, eventualmente superável por tratamentos médicos, ainda mantinha a procriação humana no seio da relação entre os membros do casal. Como já foi dito, nessa forma de PMA heteróloga, o nascituro não seria filho biológico dos dois membros do casal. Mas o resultado final, com a presença de uma criança, permitia a formação de uma família aparente e exteriormente igual a uma outra família. Poder-seia dizer que, aos olhos de uma ética de tipo utilitarista, a PMA heteróloga «resolvia» a situação com o fato de fazer nascer um descendente, sendo isso considerado como o único objetivo do recurso à PMA, sem grande preocupação pelos factores éticos subjacentes. E não se comentará aqui um fato bem real, nomeadamente o enorme interesse financeiro do «mercado» da PMA, acompanhado por uma publicidade para Centros privados, muitas vezes feita sem grandes preocupações éticas. Contudo é o paradigma da constituição da família que, na verdade, se alterava, sem que se tivesse analisado em profundidade as suas reais e possíveis consequências.
A revolução sexual, que tem agora mais ou menos um meio século de existência, caracterizou- se pela dissociação entre sexualidade e procriação ou, mais precisamente, entre união sexual e procriação. Uma outra dissociação seguiu, quase recíproca da primeira, nomeadamente a dissociação da procriação e da instituição do casamento. Noutros termos, a procriação já não estava socialmente reconhecida como tendo o seu lugar normativo no seio da instituição milenar do casamento. A «união de facto» começou por legitimar-se como forma, por assim dizer, subalterna de casamento, de tal modo que a procriação neste tipo de união se desvincula da antiga ligação socialmente estabelecida no casamento. Na lógica desta evolução, poder-se-ia afirmar que a própria relação procriativa se autonomizou, dentro ou fora do casamento, dentro ou fora da união de fato. Assistimos hoje, como se diz, a novas formas de paternidade e de maternidade, a novas formas de parentalidade e de família. Tudo se passa então como se as mudanças inauguradas pela PMA fossem chamadas a pôr-se completamente ao serviço de todas as formas de parentalidade: são assim pedidos, respectivamente, o recurso à PMA já não por razões médicas, mas por razões de conveniência pessoal, a maternidade de substituição, a inseminação de mulheres solteiras a seu pedido, o reconhecimento do direito dos homossexuais à PMA para ter filhos. Deste modo, em Portugal está em curso uma lenta marcha para uma liberalização total do acesso à PMA, liberalização ainda não adquirida, mas já inscrita no projeto de militância de uma parte da população e dos membros do Parlamento. A forma tradicional de constituição da família não está rejeitada, mas encontra-se, de fato, cada vez mais sobre pé de igualdade com outras formas novas, consideradas como resultado da livre escolha em nome de uma atenção exclusiva dada à liberdade individual. Será isso um autêntico progresso ético, quando a atenção não começa por centrar-se no bem do nascituro?
A PMA constitui uma forma de intervenção biológica sobre o corpo humano. Verificamos que ela está posta ao serviço de uma multiplicidade de projetos humanos, cujo valor ético intrínseco difere consideravelmente. Analisemos brevemente um aspecto que parece fundamental. No decurso dos séculos, a procriação humana foi sempre institucionalizada; todas as sociedades estabeleceram regras do casamento e da união procriativa. Para nós, qual será então o critério ético que permite estabelecer uma fronteira, um limite, entre o recomendável e o não recomendável? A questão tem um particular relevo nas sociedades democráticas atuais, chamadas a legislar politicamente sobre a extensão da procriação dita «natural» –isto é, mediante a união sexual de dois progenitores de sexo diferente– e a inclusão de outras técnicas de procriação baseadas na ciência biomédica. O critério principal deve e deveria sempre ser o superior bem do primeiro interessado nestes processos que dão origem a novas formas de parentalidade, que dizer, o superior bem do nascituro. Ora, verifica-se que, pelo menos em Portugal, este critério nunca intervém em primeiro lugar, e quando é referido, o que nem sempre é o caso, é-lhe reservado um lugar de segundo plano, como se se tratasse de um assunto fácil de resolver e que passa por detrás do critério da liberdade de escolha dos adultos implicados nestes processos.
O critério ético não é, portanto, antes de mais nada o respeito material pelo funcionamento biológico do corpo humano na sua função reprodutiva; este respeito está subordinado à dimensão relacional e intersubjetiva implicada no processo da procriação, que inclui o dever moral de contemplar em primeiro lugar o bem do nascituro. Se é verdade que apenas quem existe é sujeito de direitos fundamentais, existe o dever dos vivos de, na procriação, se preocuparem em primeiro lugar pelo superior bem do nascituro. Podemos afirmar que neste caso, uma ética baseada na pessoa vai ao encontro de uma ética utilitarista virada para as principais consequências dos atos.
No debate bioético, porém, a discussão, mesmo norteada pela preocupação de não cair no fanatismo, mas de deixar o seu lugar à tolerância face a ideias alheias, chega cedo ou tarde a descobrir o momento em que o desacordo se torna irredutível. Aparece então a fronteira, que pode ser ténue, entre o aceitável e o inaceitável. O problema não para aqui, dado que os partidários que não admitem a presença desse limite chegam com um argumento recorrente, que se enuncia de modo simples: «se não querem isso, se não concordam com esta prática, não a façam, mas não impeçam os outros de o fazer». Considero que este argumento é puramente sofístico, na medida em que supõe que a sociedade é um conjunto de individualidades sem ligação recíproca, como se não houvesse um interesse comum, um bem comum em questão. Este bem comum é precisamente aquilo que constitui a identidade coletiva do grupo social. Noutros termos, cada um de nós está concernido pelo modo como se vive em conjunto, de tal modo que as práticas sociais –no caso presente, as que promovem novas formas de parentalidade– dizem respeito a uma maneira de viver em conjunto que importa a todos os membros da sociedade e não apenas aos que são os primeiros implicados.
As democracias ocidentais estão cada vez mais confrontadas com desafios éticos; um deles é, sem dúvida, a questão da eutanásia. Em Portugal, a questão esteve latente até ao presente (cfr contudo o Parecer 11/CNECV/95) e desencadeou-se na legislatura que começou em finais de 2015. Já existe uma abundante literatura a respeito da eutanásia e não é em poucas linhas que será possível encontrar a formulação mais adequada do critério ético destinado a colocar a fronteira entre o recomendável e o não recomendável. Por outro lado, é ao legislador que pertence a tarefa de se pronunciar nessas matérias em que a sociedade se encontra dividida, embora o legislador não apresente à partida nenhuma garantia de tomar a decisão eticamente mais feliz.
Em primeiro lugar, será necessário entender-se sobre a definição dos conceitos. Com efeito, reina no público em geral uma confusão no sentido dos termos. Às vezes confunde- se o ato de eutanásia com o alívio das dores cuja consequência acarreta uma certa redução do tempo de vida. Esta situação apresenta-se não raras vezes com os doentes terminais submetidos a opiáceos administrados para lutar contra a dor, caso que corresponde à teoria ética do ato com duplo efeito, dado que o efeito procurado não é pôr termo à vida, mas aliviar a dor. Outro é o caso em que a injecção letal é dada com a intenção de dar a morte. Nos países que legalizaram a eutanásia, esta tarefa é reservada aos médicos; contudo, já se ouviu dizer que alguns médicos já procuraram de fato delegar este ato ao pessoal de enfermagem.
Será possível encontrar um critério ético para esta intervenção radical sobre o corpo da pessoa? É de notar que partidários e oponentes se reclamam do mesmo argumento, a dignidade humana, entendida contudo de modo diferente: para os partidários, a dignidade da pessoa é posta em relação com o estado de degradação física e psicológica do doente, ao passo que os adversários da eutanásia consideram que a dignidade da vida é ontológica e não está afectada pelo estado em que a perda de saúde colocou o doente. Ora, se o mesmo argumento é invocado como justificação de duas posições éticas contraditórias, isso significa que ele deve ser analisado com muito mais cuidado. Por outro lado, sabe-se que o desenvolvimento dos cuidados paliativos tem o efeito de diminuir consideravelmente os pedidos de eutanásia. Mas sobrarão sempre casos, talvez muito raros, em que o médico está confrontado com um pedido contínuo de eutanásia. Em geral o doente pede a eutanásia ou para evitar um sofrimento futuro previsível ou por saturação no meio das dores terminais, ou ainda por não aguentar uma situação de grave diminuição física como no caso da tetraplegia. Se, do ponto de vista do doente, a eutanásia por ele solicitada constitui uma resposta ao seu pedido de suicídio assistido, por parte do médico, a prática de eutanásia é, de fato e do ponto de vista jurídico, um homicídio intencional, ainda que praticado «por compaixão».
Importantes questões laterais devem então ser levantadas. Será sempre possível diminuir total ou quase totalmente as dores, principalmente no fim da vida? Na verdade, as respostas dos médicos não são a esse respeito sempre concordantes. Contudo, uma boa prática médica consegue aliviar consideravelmente as dores terminais. Por isso mesmo, a primeira resposta a dar a um pedido de eutanásia consistirá em recorrer a todos os meios disponíveis para tratar as dores intoleráveis. Outra resposta que, na medida do possível, deveria ser previamente meditada é a ajuda destinada a tratar o medo face a dores futuras. Neste sentido, fala-se agora de um «direito a não sofrer», que, de modo mais exato, deve ser compreendido como o direito de receber toda a ajuda possível para tratar as dores, entre outras, as dores no fim da vida.
Mas será que existe eticamente um direito à eutanásia? Enquanto ato praticado pelo médico, a eutanásia opõe-se ao conteúdo do juramento de Hipócrates; e efetivamente é difícil compreender a eutanásia como prática médica, se esta consiste em estar sempre ao serviço da vida, como ajuda à vida até à morte. A eutanásia transforma a expressão «até à morte» em ajuda à vida «pela morte» induzida. É portanto difícil entender esta eutanásia como ajuda à vida; por isso mesmo, os partidários da eutanásia consideram que a ajuda à vida tem um limite, determinado pela qualidade da vida, como se uma vida sem qualidade já não fosse nem sequer digna de ser considerada como «vida humana». É provavelmente aqui que se encontra o limite, a fronteira que separa a oposição à eutanásia e a sua aceitação: será que se pode considerar uma vida sem uma aparente qualidade de vida como uma não-vida? Do ponto de vista teórico, é difícil responder afirmativamente a esta questão.
Por outro lado, não se deve ignorar a intervenção, inevitável, do «rampa deslizante» (slippery slope) já evocada mais acima. Com efeito, existem países que, tendo legalizado a eutanásia, a praticam na ausência de todo o pedido por parte do doente. Além disso e por exemplo na Bélgica, uma vez legalizada o princípio da eutanásia, aprovou-se a seguir a eutanásia infantil (com ou sem pedido do menor) e está em discussão a eutanásia por motivos psiquiátricos. Não é sem risco que se abre uma caixa de Pandora. Em suma, é possível que um doente peça para morrer para evitar dores. Mas será a compaixão que os prestadores de cuidados sentem um motivo suficiente para obtemperar a esta injunção?
A esta questão cada sociedade terá que responder. Todavia, a toda esta problemática subjaz uma questão ainda mais importante, que seria susceptível de traçar uma fronteira: a quem pertence a vida humana? Será cada pessoa por assim dizer proprietária ou dona da sua vida? Para quem pensa que a vida é um dom recebido, podemos pensar que a eutanásia não será uma maneira de honrar este dom, qualquer que seja a nossa compaixão face ao sofrimento alheio.
O debate sobre a eutanásia já se abriu em Portugal, mas ainda não está suficientemente amadurecido para que, a seu respeito, se possa chegar a uma conclusão sobre o limite entre o bem ético e o mal a evitar.
Nos últimos anos, contudo, outros assuntos do foro bioético chegaram a ser discutidos, às vezes de modo muito agitado no seio da sociedade: nomeadamente a questão do acesso aos recursos financeiros para os cuidados de saúde (quem paga o quê e para quê? Cfr 64/CNECV/2012), o problema da biologia sintética (61/CNECV/2011), assim como a posição ética a adoptar quando se colocam conflitos de interesse (72/ CNECV/2013). Mas a discussão dessas problemáticas seria o começo de uma nova navegação, que os limites desta breve apresentação não permitem iniciar.
1 Um membro do terceiro mandato do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida (2003-2008) notou que, em Portugal, existiu
uma lei sobre PMA para animais longos anos antes do aparecimento da lei sobre a PMA para os humanos!
2 Cfr os Pareceres do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida 44/CNECV/2004; 63/CNECV/2012 e 87/CNECV/2016, sendo
este último anormalmente pobre e quase inútil na parte final que diz respeito à PMA.