No Brasil, o reconhecimento da importância da saúde pública no contexto da cidadania e das relações sociais encontra respaldo na Lei nº 8.080, de 1990, que define a saúde como um direito fundamental do ser humano, devendo o Estado prover as condições indispensáveis ao seu pleno exercício (Brasil, 1990).
A Constituição Federal (1988) define como dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, além de outros direitos elementares, devendo colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.
A sustentação ética desses direitos passa pelo reconhecimento de que todos os seres humanos são fins em si mesmos e merecedores de dignidade, assim, a todos os setores da sociedade requer o compromisso com valores que permitam condições de vida compatíveis com a dignidade humana, incluindo a promoção e o acesso à saúde (Fortes, Zoboli, 2008).
Os problemas éticos dentro da atenção à saúde são indicativos da iniquidade e injustiça sistêmicas, estruturais e institucionais (Jennings, 2014). Para tanto, a bioética torna se elementar na discussão social destes enfrentamentos quando traz ao embate o diálogo entre a proteção da infância e a atenção básica em saúde. De que forma protegemos a infância desta vulnerabilidade é uma discussão emergencial e potencial a luz da bioética.
No Brasil, a Política Nacional de Promoção à Saúde traz a discussão e ampliação dos enfrentamentos a atenção à saúde no Brasil e seu papel na formulação, implementação e concretização de políticas de promoção, proteção e recuperação da saúde, e identifica a necessidade da construção de um modelo ampliado que priorize ações de melhoria da qualidade de vida dos sujeitos e coletivos (Brasil, 2010).
Na atenção a saúde é fundamental que as políticas se orientem pelos princípios da universalidade, da acessibilidade, do vínculo, da continuidade do cuidado, da integralidade da atenção, da responsabilização, da humanização, da equidade e da participação social (Brasil, 2012).
Uma das estratégias para cuidado e atenção à saúde pública, com o alarmante aumento das doenças crônicas não transmissíveis (DCNT), como obesidade, diabetes e hipertensão, são apontados modos de vida não saudáveis. Modificações de comportamentos levantam questões éticas acerca do limite do Estado sobre as opções individuais dos cidadãos, das possíveis consequências de estigmatização, se os modos de vida das pessoas são escolhas autônomas ou sofrem influência, mesmo determinação, cultural, social, econômica (Fortes, Zoboli, 2003).
A partir da expansão das doenças crônicas no país, as necessidades de saúde da população brasileira mudaram, e a alimentação constitui um componente de intervenção estratégico neste panorama. Ações específicas de alimentação saudável baseadas na concretização da segurança alimentar e nutricional e na alimentação como um direito humano são identificadas como potenciais na redução das desigualdades sociais (Botelho et al., 2016).
A Política Nacional de Promoção da Saúde estabelece entre as macroprioridades do Pacto em Defesa da Vida, o aprimoramento do acesso e da qualidade dos serviços prestados no Sistema Único de Saúde, com a ênfase na promoção, informação e educação em saúde, trazendo hábitos saudáveis de alimentação e vida como um importante fator de proteção e cuidado para os cidadãos nos diferentes ciclos da vida (Brasil, 2010).
O Plano Nacional de Enfrentamento das Doenças Crônicas 2011- 2022 pretende atuar no combate e na redução dos principais fatores de risco a doenças como sedentarismo, alimentação inadequada e excesso de peso (Malta e Silva Junior, 2013). Este documento sinaliza o desafio no desenvolvimento de ações e pesquisas no controle e prevenção, inclusive com crianças, porque estão associadas ao estilo de vida sedentário e alimentação inadequada, desde o início da vida, desfavorecendo seu crescimento e desenvolvimento em potencial.
O aumento das DCNT e suas complicações representa um importante desafio aos serviços e às políticas públicas de saúde, mas também uma questão ética para todas as esferas da sociedade, na medida em que acarreta forte impacto social, econômico e na qualidade de vida desta e das futuras gerações.
Assim, o aparecimento de doenças potencialmente evitáveis na infância potencializa a fragilidade à saúde por toda a vida, e ao considerar que quase um terço das crianças brasileiras menores de cinco anos estão desprotegidas de segurança, por apresentarem excesso de peso associado à principalmente ao consumo alimentar inadequado, deve-se buscar com mais urgência as medidas de proteção das crianças, sobretudo frente aos impactos em sua atenção à saúde.
Existem dados epidemiológicos suficientes para o alerta ao consumo de produtos ricos em sódio, gorduras, açúcar ou calorias. A transição epidemiológica em curso na sociedade moderna reforça a necessidade de atuação do Estado na proteção da população, que se torna ainda mais vulnerável frente ao consumo de alimentos não saudáveis que contribuem para o surgimento e evolução das DCNT.
Anualmente, as DCNT respondem por 36 milhões de óbitos. No Brasil, as DCNT correspondem a 72% das causas de mortes e afeta indivíduos de todas as classes socioeconômicas, atingindo de forma mais intensa grupos vulneráveis (BRASIL, 2011). Na infância, o excesso de peso é dentre as DCNT a mais detectada. Na América Latina, o constante aumento da prevalência de excesso de peso afeta entre 40 a 51 milhões de crianças e adolescentes entre 0 e 18 anos (de Onis, 2015).
Torna-se importante programar políticas públicas centradas em diretrizes de promoção à saúde, que abordem as questões relativas aos determinantes sociais, possibilitando o acesso dos cidadãos a escolhas mais saudáveis (Malta, Silva Junior, 2013). Promover autonomia aos sujeitos no seu modo de viver, através de informações que possam favorecer escolhas responsáveis e saudáveis, poderá contribuir para o alcance de melhor qualidade de vida e saúde.
Considerando, ademais, que as DCNT são potencialmente evitáveis através de cuidados com alimentação torna-se evidente que a questão da proteção à infância no contexto alimentar é também, e talvez sobretudo, uma questão de natureza ética.
A consideração ética do problema da alimentação na infância como determinante social da saúde passa pela necessidade de ampliar a autonomia dos sujeitos para a efetiva realização de escolhas alimentares, além de valorizar a responsabilidade pública na proteção aos vulneráveis. Neste sentido, a bioética aplica-se na problematização do sistema alimentar e seus determinantes na carga das doenças que afetam a vida e a qualidade de vida na infância, com intercorrência na saúde em outras fases da vida destas crianças, o que determina em primeira instância, uma violação dos princípios fundamentais de justiça e direitos humanos (Sarmiento, 2010).
Visando a proteção aos vulneráveis, e consequentemente o reforço à autonomia para as escolhas alimentares, é inegável que a regulação e regulamentação em toda a cadeia da produção e consumo de alimentos são papéis do Estado e necessitam ser fortalecidos (Silva, 2016).
Analisar o sistema alimentar sob a perspectiva da Ética da Responsabilidade, de Hans Jonas (2006), permite também construir o entendimento de que o sistema alimentar deve agir de forma responsável com fins de beneficiar a população que deve ser protegida por meio de intervenções do Estado, justamente em vista de sua vulnerabilidade (Silva, 2016). Desta forma, a bioética dialoga sobre as responsabilidades do Estado, da família e da sociedade à proteção dos vulneráveis.
Assim, a defesa dos Direitos Humanos à saúde e à alimentação adequada pode ser reforçada pela Ética da Responsabilidade, entendendo-se o sistema alimentar sob uma visão sistêmica e transdisciplinar. Nessa perspectiva, tornam-se imperativos os deveres com as gerações futuras e a responsabilidade pública na defesa dos vulneráveis (Silva, 2016).
A Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos (UNESCO, 2005) indica que na aplicação e no avanço dos conhecimentos científicos, da prática médica e das tecnologias que lhe são associadas, deve ser tomada em consideração a vulnerabilidade humana. Os indivíduos e grupos, particularmente os vulneráveis, devem ser protegidos com respeito à integridade pessoal dos indivíduos em causa. De acordo com o documento, a vulnerabilidade elevada à condição de princípio ético visa garantir o respeito pela dignidade humana nas situações em relação às quais a autonomia e o consentimento se manifesta insuficiente, como é o caso da infância, portanto, necessita-se assumir a reflexão a partir de uma perspectiva sobre proteção à saúde dos vulneráveis.
Com base entre outros princípios éticos, como a liberdade, podemos resgatar a máxima de Amartya Sen (2010), para quem “as liberdades e possibilidades que somos capazes de exercer dependem de nossas realizações na saúde”.
Há de se considerar, ao lado da responsabilidade jurídica, o papel ético do Estado na proteção dos cidadãos (Veiga, et al., 2011), especialmente em suas relações de vulnerabilidade perante o consumo. Afinal, os governos são responsáveis perante os indivíduos e devem intervir para que seja garantida e preservada a dignidade e integridade da população.
De acordo com o Schramm e colaboradores (2005), a bioética de proteção, uma abordagem teórica autóctone da bioética brasileira, sustenta o compromisso ético dos governos em proteger todos os seus cidadãos contra a violência, pobreza e quaisquer tipos de violação aos direitos humanos.
Pautando a atenção à saúde e da ética em saúde pública, ao invés de imputar as pessoas por comportamentos prejudiciais à saúde, Fortes e Zoboli (2003) direcionam que oferecer oportunidades para busca de autonomia, através de esclarecimentos e recursos necessários para a tomada de decisão e para a efetivação das opções, devem acontecer por intermédio de políticas de saúde.
Na perspectiva normativa internacional, a Carta de Roma, elaborada no âmbito da Conferência de Nutrição e assinada por mais de 170 países, dentre eles o Brasil, reafirmou recentemente o direito de todas as pessoas a ter acesso a alimentos sadios e nutritivos, suficientes, em consonância com o direito a uma alimentação adequada (FAO, 2014).
As políticas de acessos a bens e serviços destinados à atenção a saúde da infância estão distantes dos critérios preconizados no Direito Humano à Alimentação Adequada (DHAA). Este direito é previsto em tratados internacionais de Direitos Humanos, a exemplo da Declaração Universal dos Direitos Humanos, que aponta em seu artigo XXV que toda pessoa tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar a si e a sua família saúde e bem estar, inclusive alimentação (ONU, 1948). Este direito humano, fundamental e social está definido pela Lei Orgânica de Segurança Alimentar e Nutricional (2006), bem como no artigo 11 do Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (1992) e outros instrumentos jurídicos internacionais.
En conclusión, los sanitarios debemos encontrar en el trabajo en equipo los elementos comunes para compartirlos de manera que redunde en una asistencia de calidad teniendo en cuenta los valores de los pacientes.
Em Roma, na Conferência de Nutrição, o Brasil também se comprometeu a erradicar a fome e prevenir todas as formas de malnutrição em todo o mundo, em particular a subalimentação, o atraso do crescimento, a insuficiência estatural e o sobrepeso nas crianças menores de cinco anos; [...] a anemia nas crianças, entre outras carências de micronutrientes; assim como inverter a tendência crescente do sobrepeso da obesidade e reduzir a carga de enfermidades não transmissíveis relacionadas com a dieta em todos os grupos de idade (FAO, 2014).
É pressuposto que a plena realização do DHAA permite o alcance, de forma digna, do estado de segurança alimentar e nutricional e da liberdade para exercer outros direitos fundamentais, porém o excesso de consumo de alimentos não saudáveis e as DCNT como consequência desta fome de alimentação saudável, segura e digna, potencializa a vulnerabilidade da infância e sua atenção a saúde.
Recentemente, Na encíclica Laudato Sí, Papa Francisco lamentou: “Que tipo de mundo queremos deixar a quem vai suceder-nos, às crianças que estão a crescer?” Dirigindo-se à FAO, falou da possibilidade de uma “catástrofe ecológica sob o efeito da explosão da civilização industrial”, sublinhando a “necessidade urgente de uma mudança radical no comportamento da humanidade”, porque “os progressos científicos mais extraordinários, as invenções técnicas mais assombrosas, o desenvolvimento econômico mais prodigioso, se não estiverem unidos a um progresso social e moral, voltam-se necessariamente contra o homem”.[...] Toda a pretensão de cuidar e melhorar o mundo requer mudanças profundas “nos estilos de vida, nos modelos de produção e de consumo, nas estruturas consolidadas de poder, que hoje regem as sociedades”. O progresso humano autêntico possui um caráter moral e pressupõe o pleno respeito pela pessoa humana (Papa Francisco, 2015).
Essas reflexões éticas e normativas indicam que a consolidação e efetivação dos direitos humanos, no contexto alimentar, é uma resposta humana e ética à vulnerabilidade das pessoas nos diferentes ciclos de vida. Frente à vulnerabilidade na infância é necessário assumir, portanto, o cuidado e acolhimento às dificuldades particulares do indivíduo, mas também a responsabilidade da família, da sociedade e do Estado nos fatores promotores aos cuidados e de atenção à saúde. As medidas de proteção devem ser tomadas a partir de uma responsabilização mútua sustentada no dever do respeito à dignidade das crianças e no compromisso ético com o futuro saudável das próximas gerações.
A bioética, no escopo de contribuir para a atenção à saúde e a proteção da infância traz argumentação acerca do imperativo ético na promoção da saúde global, prevenindo doenças potencialmente evitáveis por modos de vida mais saudáveis.
No caso brasileiro, é imprescindível que essa discussão ética passe a ser incorporada ao próprio funcionamento do Sistema único de Saúde (SUS), no que diz respeito à responsabilidade social do Estado, à definição de prioridades com relação à alocação e distribuição de recursos, à preparação mais adequada de recursos humanos, contribuindo diretamente para a melhoria da atenção à saúde pública e global (Fortes, Zoboli, 2003), protegendo desta forma, a vulnerabilidade da infância nos cuidados à saúde.
Primando por uma lógica equitativa, é responsabilidade do Estado garantir e preservar a dignidade das pessoas, individualmente ou em grupos sociais, buscando minimizar assimetrias nas relações e amenizar os efeitos das diversas vulnerabilidades (Veiga, et al., 2011).
Essa lógica reforça e confere destaque à visão de direitos previstos constitucionalmente, entendendo a saúde como direito de todos e dever do Estado, e a alimentação adequada também como direito social, entre outras políticas públicas voltadas à proteção, promoção e garantia à saúde.
Diante da problematização ética sobre os riscos relacionados ao consumo e as consequentes responsabilidades pública e individual com a proteção das crianças, não se pode esperar para desenvolver ações para proteção da vulnerabilidade da infância. Tais medidas devem ser tomadas a partir de uma responsabilização mútua entre os diversos setores da sociedade para garantir cidadania, à dignidade e à proteção dos vulneráveis no contexto de toda a atenção à saúde, incluindo as dimensões sociais.
Desta forma, esta é uma questão ética para todas as esferas da sociedade, na medida em que acarreta forte impacto social, econômico e na qualidade de vida desta e das futuras gerações. Garantir à infância potencial de vida com saúde torna-se ainda eticamente mais imperativo na medida em que as doenças relacionadas ao modo de vida são potencialmente evitáveis.