A assistência à saúde tem se tornado tão mais cara quanto mais ocorrem avanços na medicina. São custos que vão se avolumando e são capazes de prejudicar bastante tanto indivíduos, quanto o Estado. A lógica de lucro das indústrias farmacêuticas não pode prevalecer em detrimento da saúde de toda sociedade. Não se trata de proibir qualquer forma de lucro, mas, no mínimo, coibir (e punir) as aberrações. O caso a ser apresentado aqui é uma dessas aberrações. Tanto é assim, que, com o veremos adiante, tem sido alvo de entidades regulatórias em alguns países, com pesadas multas. O objetivo do presente trabalho é analisar este caso pela perspectiva de uma proposta bioética que nos parece a mais satisfatória, particularmente em situações de saúde pública.
A Bioética de Intervenção (BI) é uma proposta que ganhou corpo a partir do final dos anos 1990, início dos anos 2000, com origem na Universidade de Brasília, como reação à hegemonia epistemológica da Bioética Principialista de Beauchamp e Childress. Entre as muitas possibilidades de crítica ao principialismo, a BI concentra-se naquela que talvez seja sua mais grave e nociva falha, a neutralidade asséptica. Sendo muito mais uma ética descritiva de situações do meio biomédico (Paranhos, 2015) do que propriamente uma teoria bioética, o principialismo não tem a capacidade de abarcar os pontos mais críticos e necessitados das inúmeras questões dilemáticas em bioética. Tais situações, ditas “problemas persistentes” (Garrafa, 2005), são particularmente críticas em países ditos periféricos, tais como a exclusão social, concentração de poder, pobreza, e as consequências nocivas à saúde e bem-estar dos cidadãos de tais países, notadamente os do hemisfério sul. Não sendo possível, pois, uma posição de neutralidade diante de tais questões, não é satisfatório, de fato está longe de o ser, uma proposta epistemológica que se pretenda neutra, asséptica, como a principialista.
Em “Bioética, Poder e Injustiça: Por uma bioética de intervenção”, Garrafa e Porto (2004) estabelecem as condições para uma bioética engajada, completamente diferente da proposta pretensamente neutra e apolítica do principialismo. Dividindo a bioética em de “situações persistentes” e de “situações emergentes”, sendo as primeiras relativas a problemas antigos e persistentes tanto na área social quanto na área biomédica, e as emergentes ocasionadas pelas novas tecnologias, os autores frisam a necessidade de um papel ativo, político, para a bioética:
O que está acontecendo, muitas vezes, é a utilização de justificativas bioéticas como instrumentos, como ferramentas metodológicas, que acabam servindo de modo neutral apenas para a leitura e interpretação (acríticas) dos conflitos, por mais dramáticos que sejam. Dessa maneira, é atenuada (e até mesmo anulada, apagada...) a gravidade das diferentes situações, principalmente aquelas coletivas e que, portanto, acarretam as mais profundas distorções sociais (Garrafa e Porto, 2004).
Um tal desafio, a saber, o de oferecer respostas a problemas persistentes e graves, exige reação contundente. A BI se propõe como a alternativa mais satisfatória. Seus pressupostos incluem como moralmente justificável “no campo público e coletivo prioridade para políticas e decisões que privilegiem o maior número de pessoas pelo tempo mais longo possível, ainda que isso afete posições individuais” (Garrafa e Porto, 2004). Tal opção pelo coletivo em detrimento do individual levará forçosamente ao questionamento de velhos dilemas, tais como “autonomia versus justiça/equidade, benefício individual versus solidariedade, omissão versus participação, mudanças superficiais e temporárias versus transformações concretas e permanentes” (Garrafa e Porto, 2004).
Percebe-se, portanto, que a BI tem uma “fundamentação filosófica utilitarista e consenquencialista” (Garrafa & Porto, 2008). E não poderia ser diferente, já que privilegia o coletivo, e não o individual. Entretanto, vale frisar que não se trata apenas de uma posição fria e calculista, disposta a passar por cima de tudo e todos em nome de um princípio. Se assim fosse, perderia todo sentido de sua motivação inicial, a saber, aqueles em posição mais vulnerável no mundo dito globalizado. São caras à BI categorias como “responsabilidade, cuidado, solidariedade, comprometimento, alteridade, tolerância, além de prevenção de danos, precaução, prudência e proteção”. (Garrafa, 2005) Esta última –proteção– é elemento chave para não se perder de vista minorias particularmente vulneráveis.
Diante do exposto, uma questão se apresenta. Se a Bioética é “de Intervenção”, quem, exatamente, levará a cabo tal “intervenção”? Com que autoridade, e legitimada como? Se sempre teremos a possibilidade de perdedores e ganhadores a partir de uma decisão tomada, é preciso que tenhamos o cuidado de apresentar uma fundamentação sólida para evitar questionamentos. Quando se trata de alocação de recursos, por exemplo, tal fundamentação deve vir de uma associação entre princípios consistentes de justiça com um processo justo de impor limites (Daniels, 2008).
No caso da BI, a legitimação da autoridade nos parece dada de forma satisfatória pela fundamentação utilitarista. A decisão final deve sempre levar em consideração o maior bem para o maior número de pessoas, exceto quando isso acarretar prejuízo significativo para uma determinada minoria particularmente vulnerável, que, neste caso, deverá receber a intervenção afirmativa do Estado. Este deve então arbitrar e intervir, sempre que necessário, e com base nos princípios norteadores da BI, para que tal objetivo seja alcançado(Paranhos, 2015).
No caso de alocação de recursos, sempre haverá casos dilemáticos em que, por mais sólida que seja uma fundamentação, terão como resultado ganhadores e perdedores, sendo que os primeiros muitas vezes nem sequer se dão conta de o ser, mas os segundos, sim. Por exemplo, quando se pretere um tratamento caro para uma pessoa, em nome de não se retirar recursos de um programa de atenção básica já em andamento.
Mas também há casos em que a decisão não é tão difícil. E os “perdedores” na verdade não chegam a perder, mas, sim, ganhar menos.
Nos últimos anos pode-se dizer que ocorreu uma verdadeira revolução no tratamento de algumas doenças da retina que têm a proliferação vascular como elemento chave de sua fisiopatologia. Uma classe de drogas biológicas, anticorpos monoclonais, começou a ser usada em doenças para as quais não se tinha tratamento efetivo, como a degeneração macular relacionada à idade (DMRI) do tipo exsudativo. Rapidamente, as mesmas drogas se mostraram bastante eficazes para outras doenças com proliferação vascular, como a oclusão venosa e aquela que é uma das principais causas de cegueira no mundo, a retinopatia diabética.
Duas destas drogas foram desenvolvidas pelo mesmo laboratório –Genentech–, que depois passou a fazer parte do grupo Roche. São elas Bevacizumabe (Avastin®) e Ranibizumabe (Lucentis®). No caso do ranibizumabe, é o laboratório Novartis que tem a licença para comercialização fora dos Estados Unidos (Wasserman, 2014). Embora sejam drogas bastante semelhantes, foram desenvolvidas e licenciadas para indicações diferentes. Bevacizumabe, para tumores, e ranibizumabe, para DMRI (e em seguida para mais indicações, mas sempre oculares). Seu mecanismo de ação é o mesmo: combinam-se e bloqueiam o fator de proliferação endotelial vascular (VEGF, da sigla em inglês).
Por causa de sua indicação diferente, cada uma destas drogas é comercializada em quantidades bastante diferentes. Como se pode constatar pelas bulas aprovadas pela Anvisa, o Bevacizumabe, em ampolas de 4 e 16 ml, e o ranibizumabe, 0,23 ml. Conclui-se, portanto, que a ampola de bevacizumabe pode conter de 17 (4 ml) a 70 (16 ml) vezes a quantidade de droga em comparação com a do ranibizumabe (0,23 ml). A quantidade a ser aplicada intraocularmente (de qualquer uma das duas drogas) é de apenas 0,05 ml. Infelizmente, embora tenham revolucionado o tratamento de algumas doenças oculares, tais drogas têm um grande inconveniente: precisam ser aplicadas repetidas vezes, dentro do olho, com intervalos de um mês entre as aplicações. Os protocolos de uso variam de aplicações mensais todo o ano para aplicações de acordo com a necessidade, mas, de toda forma, são necessárias várias aplicações.
Uma peculiaridade de tais drogas é a necessidade de pronto uso, assim que aberta a ampola. Portanto, a despeito da grande quantidade de bevacizumabe para uso intra-ocular, não se pode “usar e guardar”, mesmo que com refrigeração. Isto faz com que, para que se otimize o uso do bevacizumabe, haja duas formas. Ou se realiza o procedimento em vários pacientes no mesmo período, ou se fraciona a droga em várias ampolas menores, para que se possa fazer uso à medida que se for necessitando. E aqui começa o problema.
Mas antes, algumas palavras sobre custo. Em artigo publicado no British Medical Journal em que discute dois grandes ensaios clínicos que demonstraram que bevacizumabe e ranizumabe têm a mesma eficácia para o tratamento da DMRI exsudativa, (os ensaios clínicos CATT e IVAN, Chakravarthy et al, 2012, e Martin et al, 2012, respectivamente), Nigel Hawkes fornece alguns números: “Se usado mensalmente, o tratamento com ranibizumabe custa 9.656 libras esterlinas (por paciente, por ano), e o bevacizumabe, 1.654. Se usados quando necessário –ou seja, somente se houver comprovação de progressão da doença, que é a forma prefererida pelos oftalmologistas– o tratamento com ranibizumabe custa 9.656 libras esterlinas, enquanto o bevacizumabe, 1.509.” Se o sistema de saúde pública britânico optasse pelo bevacizumabe no lugar do ranibizumabe para o tratamento da DMRI exsudativa, economizaria mais de 84 milhões de libras esterlinas por ano. Uma cifra, convenhamos, impressionante.
Os números relativos ao uso destas drogas em retinopatia diabética não são menos impressionantes. Num trabalho recente publicado pelo grupo Diabetic Retinopathy Clinical Research Network (Ross et al., 2016) os autores realizaram uma extensa e complexa análise de custo-efetividade, levando em consideração os QALY a partir da melhora nos indicadores de visão. Comparando três drogas (além do ranibizumabe e bevacizumabe, o aflibecerpt) para o tratamento de edema macular diabético, chegaram à conclusão de que, para que o ranibizumabe alcançasse a mesma proporção custo/efetividade do bevacizumabe, precisaria baixar seu custo por dose em aproximadamente 90% no primeiro ano, e aproximadamente 80% nos dez anos seguintes de tratamento.
Todos esses números são de fato contundentes e parecem não deixar margem a qualquer hesitação. Só há uma conclusão possível: a decisão moralmente correta é optar por bevacizumabe, no lugar de ranibizumabe para o tratamento de doenças para as quais ambos são eficazes. Mas, como dito acima, há um problema.
Ao contrário do que ocorre em situações nas quais um laboratório tenta “esticar” as indicações de sua droga para outras “off-label”, e com isso abrir o leque de indicações sem o esforço de ensaios clínicos dispendiosos, o que ocorre no caso do bevacizumabe é o exato oposto. Os colegas oftalmologistas retinólogos brasileiros mais atentos achavam estranho que, sempre que visitados por um representante de laboratório que lidava exclusivamente com o ranibizumabe, este fazia questão de alertar “o doutor” dos perigos de usar uma droga “off-label” (bevacizumabe). Se “o doutor” lembrasse ao representante que há inúmeras situações em medicina em que se usa drogas “off-label” a partir de boas evidências, ele então teria na ponta da língua a resposta: “Mas e quanto à eficácia? E os efeitos colaterais?” Até que começaram a sair os grandes ensaios clínicos comparando as duas drogas e demonstrando eficácia e segurança semelhantes.
Então, sobrou apenas o argumento do “perigo de se trabalhar com droga fracionada por um laboratório que não seja o oficial”. Vale dizer, tal advertência tem algum apelo, pois os médicos temem processos ligados a uma complicação dramática que pode acontecer como consequência de injeções intra-oculares, a endoftalmite (uma infecção interna, que pode evoluir catastroficamente). A incidência de endoftalmite, entretanto, não é maior para o bevacizumabe (os ensaios clínicos CATT e IVAN, entre outros, têm mostrado isso). Mas, no meio de tanta advertência aparentemente escrupulosa, surge uma pergunta dolorosamente óbvia: por que, então, os próprios fabricantes de bevacizumabe não se encarregam de fracionar sua droga? Ainda que esse processo ficasse mais caro do que é hoje, certamente não chegaria perto do custo de sua droga irmã, o ranibizumabe. Infelizmente, se é verdade que a pergunta é óbvia, também o é a resposta, como veremos a seguir.
Não parece, até o momento, que seja difícil a aplicação dos preceitos da BI no caso das drogas bevacizumabe e ranibizumabe. Se o moralmente correto a fazer é aquilo que beneficie o maior número de pessoas pelo tempo mais longo, privilegiando os mais vulneráveis (particularmente os mais socialmente vulneráveis), a droga de escolha é sem dúvida o bevacizumabe, a despeito das eventuais táticas de convencimento utilizadas pelos laboratórios responsáveis pelas drogas. Pode-se até mesmo ponderar que tais táticas estão dentro do eticamente aceitável e não surtirão efeito algum, se o alvo delas (os médicos oftalmologistas especialistas em retina) estiver bem informado e atento. Entretanto, não parece ser o caso, a julgar pela notícia de medidas drásticas tomadas pela Justiça italiana contra os laboratórios Roche e Novartis:
A Autoridade de Concorrência Italiana acusou [Roche e Novatis] de empurrar os pacientes para Lucentis, ao invés de Avastin, um produto mais barato e off-label, que pode tratar os mesmos problemas de visão. Agora, um tribunal regional italiano está mantendo as acusações contra as empresas, multando Roche e Novartis em € 180 milhões (US $ 221,6 milhões) por manipular as vendas de seus medicamentos para doenças da visão. O tribunal administrativo regional de Lazio indeferiu recursos apresentados pelas duas empresas, que foram acusadas de conspirar para dificultar o uso de Avastin para colher os lucros para o Lucentis, reportou o jornal italiano ANSA. O suporto cartel formado pelas duas companhias pode ter custado para o serviço nacional de saúde da Itália mais de € 45 milhões (US $ 55 milhões) em 2012, custo este que pode vir a se acumular em € 600 milhões por ano, relata o jornal. Em março, a autoridade de concorrência italiana aplicou multas de € 92 milhões (US $ 113 milhões) para a Novartis e € 90,5 milhões (US $ 111,4 milhões) para a Roche por suas práticas de marketing (Wasserman, 2014).
Assim como a Itália, outros países europeus têm tomado medidas contra as práticas de comercialização dos laboratórios envolvidos. Mas chama a atenção que em nenhum momento as autoridades de cada país tenham a preocupação de fundamentar sua ação interventiva no terreno da ética ou bioética. No máximo, acusam (como foi o caso da diretora da Organização Europeia de Consumidores, ainda de acordo com a citada notícia) as empresas de prática antiética, como se isso fosse autoevidente.
A questão sobre a necessidade de legitimação das decisões tomadas em saúde pública, em que se trata de preterir uns e optar por outros na alocação de recursos, é explorada na resposta à terceira pergunta que Norman Daniels se coloca em sua obra “Just Health” (2008).
Daniels (2008) coloca-se três perguntas: 1– Terá a saúde (e a assistência à saúde) um status moral diferenciado? 2– Quando as diferenças em saúde serão injustas? 3– Como se pode distribuir os recursos destinados à assistência em saúde de forma justa, considerando que não há como agradar a todos? A resposta à terceira pergunta é a mais difícil delas. E terá sobretudo de satisfazer o critério de legitimidade. A autoridade para determinar limites poderá ser uma “autoridade” e determinará limites porque é uma “autoridade” ou porque tem legitimidade (no sentido de fundamentação sólida) para tanto? Certamente é esta segunda possibilidade que nos interessa. Daniels propõe algumas condições, mas, antes, critica a abordagem utilitarista. Se a imposição de limites (que é necessária para uma alocação justa de recursos para a assistência à saúde) obedecer ao critério utilitarista (dar prioridade para o tratamento que tiver o benefício para o maior benefício para o maior número de pessoas) correrá o risco de preterir pessoas em pior situação de saúde. Tal abordagem costuma se basear em métodos de cálculo de custo/efetividade de diferentes alternativas de tratamento, lembra Daniels, o que para ele é uma abordagem equivocada por estar exposta a muitas falhas.
Embora a proposta de Daniels possua vários méritos, este receio em relação ao utilitarismo e a desconfiança com os métodos que levam em consideração o custo/efetividade de um tratamento, é equivocado. Do ponto de vista geral, como dito anteriormente, a Bioética de Intervenção não repousa apenas sobre os princípios do utilitarismo. Este não é seu ponto de chegada, mas de saída. É a ponderação primeira de uma lista de ponderações para uma tomada de decisão. Trata-se mesmo de uma escolha: como regra, privilegiar o coletivo em detrimento do individual. Mas não é só disso que se trata a BI. Sendo a BI de natureza contra-hegemônica e com origem em país periférico, tem como foco os mais vulneráveis, que frequentemente são a maioria (coincidindo com os critérios utilitaristas), mas nem sempre. Seria uma enorme incoerência a BI esmagar uma minoria vulnerável.
Saindo da esfera geral e concentrando no caso que ora analisamos, fica ainda mais claro o acerto da opção pelo utilitarismo, aqui fundamentado justamente em métodos de custo/efetividade. Os números são de tal forma contundentes que não deixam espaço a dilemas. Aqui, a “autoridade” (justiça, órgãos reguladores governamentais) é de fato uma autoridade, legitimada pelo princípio utilitarista do maior bem para o maior número de pessoas e maior tempo, que por sua vez emergiu do método de cálculo de custo/efetividade. Em outras palavras, legitimada pela Bioética de Intervenção (ainda que tais “autoridades” não se valham desse termo).
O caso das drogas bevacizumabe e ranibizumabe para tratamento de doenças da retina, embora extremo e quase caricato, é um bom exemplo da pertinência, premência e alcance de uma Bioética de Intervenção fundamentada em dois pilares, o princípio utilitarista de se optar pelo maior bem para o maior número de pessoas e pelo tempo mais longo, associado a uma proteção dos mais vulneráveis, notadamente os vulneráveis sociais. Instada a decidir, a BI o fará com base nesses princípios, o que, no caso aqui exposto, não oferece maiores dificuldades. Mas esse exemplo nos traz ainda a oportunidade de evidenciar a relação entre bioética e política, de forma geral, e, no caso da BI, a necessidade de que o interventor tenha autoridade no sentido de poder (o Estado, por meio de seus órgãos regulatórios), assim como no sentido de possuir legitimidade.