Tecnologias de reprodução assistida e a questão dos riscos para mulheres e embriões: a ponta de um iceberg

Assisted reproductive technologies and the issue of risks to women and embryos: the tip of the iceberg

Tecnologias de reprodução assistida e a questão dos riscos para mulheres e embriões

1. Introdução

O Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, que já estava previsto na Declaração Universal dos Direitos Humanos1 de 1948, tornou-se o mais importante cânone interpretativo da época atual, sendo positivado na maioria das Constituições2 do pós 2ª Guerra Mundial.

A realidade ôntica da pessoa humana tem primazia sobre qualquer construção técnico-formal, precedência assegurada pela ordem constitucional pátria. A proteção constitucional é dirigida à dignidade da pessoa, considerada em todas as suas emanações. Nessa nova ordem constitucional3, a pessoa humana passa a centralizar os institutos jurídicos, na medida em que o ser é valorizado, justificando a própria existência de um ordenamento jurídico.

A percepção da necessidade de uma proteção jurídica devida em razão da dignidade humana desenvolveu-se não apenas a partir da barbárie nazista, mas também como decorrência do desenvolvimento tecnológico na área da biomedicina onde, novamente, o ser humano torna-se terreno de conquista.

A essência humana escapa completamente da ciência, pois seu objeto é restrito aos aspectos quantitativos da matéria. Por essa razão, não se pode atribuir à ciência um papel para o qual não está preparada. Ao contrário, deve-se reconhecer seu lugar próprio e a missão da Bioética consiste justamente em orientar a ciência, para que não se atribua tarefas que não lhe são correspondentes.

A essência humana escapa completamente da ciência, pois seu objeto é restrito aos aspectos quantitativos da matéria. Por essa razão, não se pode atribuir à ciência um papel para o qual não está preparada. Ao contrário, deve-se reconhecer seu lugar próprio e a missão da Bioética consiste justamente em orientar a ciência, para que não se atribua tarefas que não lhe são correspondentes.

No cenário tecnológico atual, o ser humano começa a ser visto segundo as categorias tecnocientíficas e é reduzido ao status de coisas que se pode modelar à imagem dos objetos técnicos: “a nova coisificação é muito mais direta, pois atua de um modo imediato sobre o corpo do ser humano. Já não é o obrar da pessoa que se vê ameaçado de coisificação, mas o seu próprio ser em sua radicalidade mais absoluta”4 (Andorno, 2012, p. 68, tradução própria, grifo no original).

Nesse contexto de novas possibilidades de intervenção artificial da vida humana, observa- se o crescente retorno da discussão acerca do conceito de pessoa tanto pelo Direito quanto pela Bioética5 . Entende-se ser tarefa conjunta do Direito e da Bioética impor limites e dirigir os fins das biotecnologias para que haja uma real promoção da pessoa humana.

A pessoa humana é a referência central dessas duas grandes áreas. Todos os institutos existentes na ordem jurídica encontram garantia tão somente em face do seu fim de permitir o desenvolvimento da personalidade humana (função promocional).

Caracteriza-se a Bioética pelo pluralismo e pela multisdisciplinariedade. Seus princípios devem expressar as raízes da vida moral, sendo o resultado de uma solução democrática.

A partir da concepção de uma Bioética Principiológica, pretende-se desenvolver uma proposta discursiva voltada à proteção da pessoa humana, no contexto das novas possibilidades de intervenção artificial da vida humana, especificamente no que concerne a produção de embriões e ao tratamento pelo qual a mulher precisa se submeter no cenário da reprodução medicamente assistida.

2. As técnicas de reprodução assistida e a questão dos riscos

A Bioética Principiológica, marco teórico adotado no presente trabalho, está entre as mais divulgadas e tem como protagonistas Tom Beuchamp e James Childress, autores da obra clássica Principles of Biomedical Ethics, cuja primeira edição foi publicada em 1979.

Segundo este enfoque, existem princípios que devem guiar a tomada das decisões, sendo a ordem hierárquica estabelecida somente diante das circunstâncias fáticas. Resumem-se a quatro: o princípio da autonomia cujo surgimento está intimamente relacionado aos procedimentos utilizados nas experiências com seres humanos realizadas durante e após o período da Segunda Guerra Mundial. Em linhas gerais, refere-se ao direito dos pacientes e participantes em investigações biomédicas de serem corretamente informados acerca da intervenção que lhes é proposta, tomando conhecimento, sobretudo, da natureza, dos objetivos e dos riscos para, então, livremente decidirem se irão se submeter aos tratamentos e pesquisas. O princípio da beneficência exige a realização de atos condizentes com a saúde do paciente. O princípio da não maleficência enfatiza a necessidade de não causar dano ao paciente. O principio da justiça ordena uma distribuição equitativa dos recursos disponíveis entre as pessoas que necessitam.

Andorno (2012, p. 34-35) apresenta algumas críticas a essa proposta apontando para a ausência de um fundamento ontológico e antropológico bem como ausência de uma teoria moral mais ampla que fosse capaz de harmonizar os princípios em questão; não há, para o autor, uma explicação clara de como esses princípios poderão ser conciliados diante de um conflito; como eventual técnica de ponderação será empregada.

A despeito das críticas, o autor reconhecer ser inevitável a referência a certos princípios e enfatiza outros, em especial o Princípio da Dignidade humana, reconhecido como verdadeiro rol unificador da Bioética; o Princípio da Vulnerabilidade, inerente a existência humana que reclama solidariedade e cuidado por parte dos indivíduos e da sociedade em seu conjunto; o Princípio da Precaução6, segundo o qual, existem comportamentos que devem ser proibidos, sancionados e punidos em razão dos riscos que podem causar. Diante de dúvidas acerca da posição a seguir, deve-se adotar a que seja mais favorável ao sujeito mais frágil (in dubio pro vita; in dubio pro persona). Esse último princípio relaciona-se ao juízo prudencial, ou sabedoria prática em sentido aristotélico e adota como premissa uma obrigação de vigilância, promovendo, sobretudo, a consciência da responsabilidade política em seu grau mais elevado, uma vez que obriga a avaliação competente dos impactos econômicos e sociais decorrentes da decisão de agir ou de se abster.

Em matéria de procriação assistida, necessário primeiramente pontuar que nem tudo que é tecnicamente possível é eticamente aceitável e socialmente desejável. Verificase a necessidade de realizar estudos mais aprofundados no que concerne ao impacto das técnicas de reprodução assistida tanto nas mulheres quanto nos embriões que estão sendo gerados, tendo em vista que o Conselho Federal de Medicina apenas autoriza o emprego dessas técnicas quando não se incorra em risco grave de saúde para a paciente ou possível descendente7.

Em razão disso, ancorado nos Princípios da Precaução e da Dignidade Humana que exige que todos os recursos tecnológicos sejam empregados em favor da promoção da pessoa, sustenta-se que as tecnologias reprodutivas devem ser empregadas com cautela.

Um dos principais riscos a que se submetem as mulheres com as técnicas de reprodução assistida envolve a alta ingestão de hormônios que, a curto prazo, podem ocasionar a síndrome da hiperestimulação ovariana e uma série de complicações potencialmente graves caracterizadas pela formação de múltiplos cistos ovarianos, associada ao aumento da permeabilidade capilar, que traz, como consequência, formação de ascite e hidrotórax, distúrbio hidroeletrolítico, hemoconcentração, distensão abdominal, náuseas, vômitos e diarréia. Nos casos mais severos, sobrevêm a hipovolemia, oligúria e fenômenos tromboembólicos. Isso significa que os vasos deixam passar líquido através de suas paredes, acumulando-se, esse líquido, na barriga, no tórax, podendo chegar à insuficiência dos rins, ao choque e até à morte. Os ovários crescem anormalmente, podendo torcer-se, o que exige cirurgia. Com a hiperestimulação, podem se desenvolver vinte, trinta e até mais óvulos num só ciclo. Os efeitos a médio e longo prazos desses hormônios nunca são mencionados e são pouco acompanhados (Reis, 2006, p. 83).

O recurso à reprodução assistida, mesmo diante de tantos riscos, segundo pesquisas realizadas por Côrrea (2001) envolvendo usuários da reprodução assistida, insere-se em um contexto cultural com forte ênfase na autonomia, sendo a impossibilidade de procriar vista como um grave obstáculo à liberdade, ao livre arbítrio e ao controle individual na formação das famílias.

Corrêa (2001, p. 75) assevera, todavia, ser muito difícil determinar em que medida o recurso à reprodução assistida expressa um exercício da vontade individual e em que medida é produto de condicionamentos sociais. Para a autora, a rede de desejos, objetos técnicos, possibilidades morais e recursos materiais são tecidos de maneira complexa, sendo impossível dissociar o social e o material do desejo de filhos. Nesse sentido, questiona se seriam as tecnologias reprodutivas geradoras de um novo tipo de desejo de ter filhos e qual o papel das próprias tecnologias na demanda por filhos da reprodução assistida.

Ballester (2011, p. 28) também observa que a ciência médica ao invés de esforçar-se para identificar com maior claridade as causas da infertilidade tem simplesmente optado pela substituição artificial da função reprodutora, mesmo quando a situação é de subfertilidade. Para o autor, as técnicas de reprodução assistida não correspondem a verdadeiros tratamentos terapêuticos; não curam a infertilidade, pois o objetivo é garantir a produção de um bebê. Não há também uma subordinação estrita do recurso às técnicas reprodutivas a razões médicas, ou seja, às situações de infertilidade, pois, a técnica pode ser empregada por pessoas que não se encontram em uma situação de infertilidade.

A Injeção Intracitoplasmática de Espermatozoide (ICSI), por exemplo, técnica considerada de alta complexidade, surgiu em 19928 como uma alternativa para infertilidade masculina, seja por baixa9 contagem, anomalias de mobilidade ou por ausência de espermatozoides10, o que torna, de certa forma, desnecessário o recurso dos casais aos doadores de gametas masculino. A técnica também tem sido empregada quando há falha na FIV em ciclo anterior11 e quando há um número muito baixo de recuperação de ovócitos. Excetuadas essas últimas situações, a aplicação da ICSI impõe a mulheres perfeitamente normais intervenções que comportam os riscos do ciclo FIV, o que deixa a interrogação quanto a sua eticidade e aceitação, principalmente por parte do corpo médico, que irá promover intervenções de risco sobre mulheres saudáveis (Moratalla, 2012).

Em relação aos riscos causados nos embriões gerados pelas tecnologias reprodutivas, López Moratalla et al. (2012, p. 485) denunciam que somente no início da década de 90 começaram a ser publicados os primeiros estudos12 comparativos da saúde dos embriões concebidos naturalmente e daqueles oriundos das biotecnologias no período de 1978 a 1987, conforme apresenta o relatório13 do Medical Research Council. Os autores mencionam que, ao longo da década de 90, observa-se uma clara relação entre a aplicação da FIV e a prematuridade e o baixo peso das crianças (que gera hipotensão e afeta o desenvolvimento neurológico), além de enfermidades cardíacas e outras como hipertensão, osteoporose e má-formação.

Em 2005, uma importante pesquisa liderada por Hansen (2005) é publicada em forma de artigo comprovando que as crianças concebidas por FIV ou por ICSI tinham uma prevalência em dobro (8,8% frente a 4,2%) de alterações cromossômicas, más-formações cardíacas, atresia esofágica e más-formações craniais em comparação às crianças concebidas naturalmente. Um estudo mais recente, publicado no The New England Journal of Medicine, realizado com mais de 300.000 recém-nascidos dos quais 6.163 haviam sido gerados por técnicas de reprodução assistida, colocou em manifesto que, além das complicações perinatais, o risco de nascer com algum tipo de defeito é maior (8,3%) quando a criança é oriunda de qualquer técnica de reprodução em comparação com aqueles que são naturalmente concebidos (5,8%). Nesta pesquisa, constataramse também diferenças significativas segundo a técnica empregada: 7,2% das crianças oriundas da FIV apresentaram problemas, sendo a porcentagem de 9,9 quando houve o emprego da ICSI (Davies et al., 2012).

A despeito das contribuições da técnica de ICSI para a infertilidade masculina, torna-se imperioso discutir o potencial de risco sofrido pelas crianças nascidas a partir desse procedimento, visto que a ICSI é uma técnica de micromanipulação invasiva cuja injeção substitui as etapas de interação entre os gametas como reação acrossômica, união do espermatozoide à zona pelúcida, penetração e interação das membranas ovocitárias e espermática (Leal, 2003, p. 160).

A fecundação forçada do ovócito, por meio dessa técnica demonstrou ser um alto risco para a descendência, uma vez que a incapacidade fecundante dos espermatozoides é geralmente devido a causas genéticas, ou associada a alterações do cromossomo Y ou, então, a mutações induzidas por agentes tóxicos ambientais. A partir do momento em que a capacidade fecundante de espermatozoides alterados é forçada, o risco de herdar alterações devidas à esterilidade paterna é transferido para as seguintes gerações, no caso de filhos do sexo masculino (López Moratalla et al., 2012, p. 472).

López Moratalla et al. (2012, p. 493) também mencionam que 6% dos homens estéreis tem um cariótipo com anomalias do tipo de trissominas dos cromossomos sexuais. A título exemplificativo, a síndrome de Klinefelter14 , que ocorre em 1 a cada 500 meninos nascidos, afeta 14% dos homens com azoospermia não obstructiva. O emprego da ICSI, assim, permite a transmissão à descendência desse tipo de enfermidade genética. Nessas circunstâncias, a autora defende ser imprescindível uma análise rigorosa das causas de esterilidade masculina e, sendo constatada qualquer tipo de alteração cromossômica, o ideal é que a ICSI seja desaconselhada.

Essas questões, segundo López Moratalla et al. (2012), representam apenas a ponta do iceberg, sendo, pois, imprescindível determinar quais aspectos das técnicas causam mais riscos e como poderiam ser minimizados e avançar na investigação para descobrir se a exposição a um ambiente in vitro, na fase mais frágil do processo evolutivo humano, afeta o desenvolvimento de órgãos e tecidos. Scherrer et al. (2012), em seus estudos, constataram que há alterações que aparecem a longo prazo, como a enfermidade sistêmica pulmonar e cardiovascular, causadas pela exposição do embrião nos primeiros dias, nos quais está vulnerável, a um entorno adverso e à estimulação ovárica.

Somente a partir de pesquisas aprofundadas será possível definir uma indicação clara quanto aos usos dos diferentes procedimentos das técnicas de reprodução assistida, a fim de minimizar os riscos associados ao seu caráter invasivo.

Por essa razão, incumbe à Bioética e ao Direito dirigir as biotecnologias e não o contrário. O cerne da questão reside na distinção que deve ser feita entre o progresso verdadeiro e o progresso aparente, considerando aquele como o emprego de meios técnicos que estão a serviço do real desenvolvimento da personalidade humana.

3. Crítica à entificação da técnica

Fukuyama (2003, p. 111), ao formular a pergunta “por que deveríamos nos inquietar com relação à biotecnologia?”, elucida que:

(...) o medo mais profundo que as pessoas expressam acerca da biotecnologia nada tem de utilitário. Trata-se antes de um medo de que, no fim das contas, ela nos faça de algum modo perder nossa humanidade – isto é, alguma qualidade essencial que sempre sustentou nosso senso do que somos e de para onde estamos indo (...). Poderíamos assim emergir do outro lado de uma grande linha divisória entre história humana e história pós-humana sem nem mesmo perceber que o divisor de águas fora rompido porque teríamos sido cegos ao que era essa essência.

O autor prossegue questionando o que seria a essência humana posta em perigo e responde, com uma perspectiva secular, ainda que de forma cíclica, que a essência humana não pode ser outra coisa senão a própria natureza humana: as características típicas15 da espécie partilhada por todos os seres humanos como seres humanos.

Fukuyama (2003, p. 137) argumenta que a natureza humana é o fundamento para determinar quais pontos na biotecnologia precisam de maiores salvaguardas contra desenvolvimentos futuros e ressalta que a natureza humana não dita uma lista única e precisa de direitos. A natureza humana é complexa por ser flexível, uma vez que interage com vários ambientes naturais e tecnológicos, e ao mesmo tempo, não é infinitamente maleável e, por isso, deve ser protegida contra avanços da biotecnologia que diminuam a condição humana. É a natureza humana que confere senso moral e habilidades sociais para viver-se em sociedade, servindo de base para discussões filosóficas sobre direito, justiça e moralidade. O abandono dessa ideia levaria a um território sombrio e demasiadamente incerto.

Ao externar suas preocupações com os efeitos da biotecnologia sobre a natureza humana, Fukuyama (2003), entretanto, equivoca-se ao atribuir à biotecnologia um valor entitativo, um papel hostil que ameaça escapar do domínio dos homens. Essa preocupação com a despersonalização do ser humano, tida como consequência da absorção por parte da técnica, resulta da incompreensão do fato histórico de que o homem sempre existiu envolvido pelas técnicas.

Não há como pensar técnica sem homem e, por isso, a técnica nunca dominará o homem, pelo simples motivo, como coloca Pinto (2005), de estar sempre subordinada aos interesses dele, não sendo possível escapar do seu poder. A biotecnologia, nesse sentido, apenas reflete o progresso da hominização.

Quando se verifica a espoliação de certos grupos humanos, o autor da espoliação não é a técnica, mas um grupo ou classe social que se vale dos instrumentos técnicos para a satisfação de seus fins. Fukuyama (2003) não atenta para esse papel das relações sociais de produção e, por isso, alerta para os perigos que a biotecnologia pode causar à natureza humana. Entretanto, dotar a técnica de aspecto maligno significa conferir poderes demiúrgicos ao que constitui simples adjetivo16.

A técnica pertence ao homem, único sujeito da sua história; deriva do conhecimento do mundo, não podendo, por isso, ser agente de qualquer ação que requer o exercício por parte de um ser, uma realidade em si (Pinto, 2005, p. 174). A única fonte do mal ou do bem para o homem é o próprio homem. Ferramentas, máquinas ou quaisquer outros objetos técnicos serão sempre meios pelos quais o bem ou o mal podem ser praticados no seio das contradições das relações sociais entre os homens:

A substantivização ou entificação da técnica atende aos interesses dos grupos sociais poderosos que, mediante a antropomorfização da técnica, fazem passar para segundo plano o papel real desempenhado pelos homens. Numa manobra de auto-inocentamento histórico, os detentores do poder social transferem para uma abstração as responsabilidades objetivas que de fato cabem a indivíduos perfeitamente concretos e identificados (PINTO, 2005, p. 180).

A técnica, portanto, tem apenas significado modal, não é sujeito ou motor do processo histórico. Toda história é impulsionada pela consciência dos homens que, mediante a técnica, investiga a realidade objetiva do campo físico e no sistema de relações sociais e, se dispõe a intervir produzindo modificações historicamente visíveis. Daí que a questão do problema não reside na natureza da técnica, mas na sociabilidade na qual determinada técnica se desenvolve. O problema não é a técnica, mas o seu uso social.

Alicerçado nesse raciocínio, Pinto (2005) conclui ser preciso verificar o tipo de sociedade no qual se desenvolve determinada técnica, considerada em si, erroneamente, como problemática, ou seja, torna-se necessário considerar a relação do ser com o desenvolvimento das forças produtivas.

Em concordância, Sève (1997, p. 311) pondera que “ciência e técnica são sempre resultado do mundo social. Se se desconhece este dado fundamental, tomam-se como realidades explicativas entidades mistificadoras”.

Ao se transferir ingenuamente para as técnicas de reprodução assistida uma caráter de moralidade que é unicamente atribuível ao homem, os verdadeiros responsáveis por eventuais erros no que diz respeito ao emprego dessas técnicas estarão isentos de responsabilidade17.

Uma vez que a técnica exprime o modo de ação humana, qualquer valoração ética não lhe diz respeito diretamente, mas a quem dela se utiliza no âmbito das relações sociais. Portanto, inexiste uma moral da técnica, pois a qualificação ética só tem sentido em relação ao homem no desempenho da atuação social (Pinto, 2005, p. 168).

Dessa forma, não são as técnicas de reprodução assistida responsáveis pela fragmentação do corpo humano e da sua mercadorização, mas a estrutura da sociedade que permite e justifica a perpetração deste resultado. A forma social capitalista dá um teor capitalista para as técnicas de reprodução assistida a fim de cumprirem, precipuamente, o papel de geração de riqueza através das experiências proporcionadas.

A concepção que pretende responsabilizar as técnicas de reprodução assistida pelos resultados desumanos que com frequência acarretam é ingênua, pois ignora que a tecnologia será sempre uma mediação. Unicamente no homem reside o verdadeiro responsável pelos aspectos negativos sobre o próprio ser humano.

Aponta-se, portanto, para a necessidade de problematizar os limites da manipulação antecipada dos processos da vida biológica e de discutir a responsabilidade dos diversos agentes com o futuro da humanidade.

O fulcro central da questão reside no fato de que toda técnica desenvolve-se em determinada forma de organização social e, no capitalismo, esse avanço tecnológico está intimamente vinculado à produção de riqueza e aos meios de aquisição de poder, carecendo de construções valorativas, ante aos custos que possa causar à manutenção de direitos aclamados como fundamentais.

4. Considerações Finais

Sinaliza-se a existência de um paradoxo inquietante, pois precisamente nesse momento atual de incertezas, as sociedades precisam dirimir opções éticas decisivas. Todavia, como encontrar pontos de referência objetivos em uma época tão marcada pelo ceticismo? Talvez a saída desse labirinto consista em um novo esforço para redescobrir o ser humano; sua natureza humana.

Por essa razão, este trabalho buscou enfatizar a necessidade de uma tutela protetiva forte para o embrião extracorporal e para a mulher. Diante dos novos dilemas bioéticos, é a essência do ser humano que está posta em questão; do homem como sujeito que resiste à coisificação, sendo a grande tarefa de todas as esferas do conhecimento distinguir o que personaliza o ser humano daquilo que o despersonaliza.

Incumbe, portanto, à Bioética construir um espaço democrático para que seus conflitos sejam melhor resolvidos por meio da racionalidade e da argumentação. Nesse sentido, sustenta-se que um direito que efetivamente deve ser universalizado é a existência de espaços permanentes de discussão a fim de se evitar a imposição de valores e interesses dos grupos majoritários e das potências hegemônicas. Mister, também, ressaltar que os problemas de uma sociedade pluralista, como as sociedades ocidentais, serão sempre renegociáveis, isto é, passíveis de revisão, constituindo-se em ambiente aberto de discussão.


1“Preâmbulo: Considerando que o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana (...) Considerando que os povos das Nações Unidas reafirmaram, na Carta, sua fé nos direitos humanos fundamentais, na dignidade e no valor da pessoa humana (...). Artigo I: Todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotadas de razão e consciência e devem agir em relação umas às outras com espírito de fraternidade”.
2O primeiro momento histórico em que a dignidade da pessoa humana foi recepcionada como princípio constitucional foi na Carta Constitucional da República Alemã de 1949. Art. 1º. (proteção da dignidade da pessoa humana) A dignidade da pessoa humana é inviolável. Todas as autoridades públicas têm o dever de a respeitar e proteger. Constata-se que a partir do marco histórico do texto constitucional alemão, a constitucionalização da dignidade da pessoa humana enquanto princípio arraigou-se a várias constituições contemporâneas. A história do constitucionalismo brasileiro, entretanto, não acompanhou de imediato essa transformação, pois, embora sejam encontradas algumas manifestações constitucionais destinadas a proteger a pessoa humana, tal proteção, antes de 1988, era restrita à defesa da liberdade individual, e, meramente formal. Convém trazer a título de exemplo a edição do Ato Institucional nº. 5, no ano de 1968, época da ditadura militar que, ao fundamentar a defesa do regime institucionalizado, dispôs ser o mesmo baseado na liberdade e no respeito à dignidade da pessoa humana.
3A proteção oferecida pelas Constituições anteriores à de 1988 era também estritamente formal. Apesar de ser possível a dedução de certa proteção da pessoa humana dos textos constitucionais mais antigos que tutelavam as liberdades fundamentais, estas se vinculavam à liberdade de contratar e de exercer as faculdades do direito de propriedade sem interferência do Estado. Não havia uma real proteção da pessoa e dos valores que lhe são indispensáveis, posto que a preocupação consistia em fixar limites à intervenção do Estado tendo por base a consagração das liberdades do homem. A expressão liberdade estava profundamente vinculada à ideia de um espaço não violável pelo Estado (Ramos, 1998) – ideia de abstenção que como tal não comportava a noção de promoção de um espaço onde o homem pudesse desenvolver de forma autônoma sua personalidade.
4La nueva coisificación es mucha más directa, puesto que actúa de um modo imediato sobre el cuerpo mismo del ser humano. Ya no es el obrar de la persona lo que se ve amenazado de coisificación, sino su ser mismo em su radicalidade más absoluta.
5Em síntese, entende-se Bioética, pela conceituação apresentada por Adorno (2012, p. 12) como sendo um ramo da Ética que se ocupa de estudar a moralidade do agir, buscando, principalmente, respostas sobre o tratamento que deve ser conferido à vida humana, diante do desenvolvimento biotécnico.
6Andorno coloca o Princípio da Precaução como um novo parâmetro internacional a ser observado no contexto das diferentes inovações tecnológicas que podem vir a causar danos nos seres humanos e no meio-ambiente. O autor relaciona o Princípio da Precaução a prudência, em sentido aristotélico, que consiste em sabedoria prática (phronesis), o oposto da sabedoria teórica (sohpia). Através da aplicação desse princípio, Andorno busca encontrar o equilíbrio adequado entre duas posições extremas: o medo irracional das novas tecnologias e a atitude irresponsável dos dispositivos tecnológicos que trazem riscos para a humanidade. A abordagem proposta é no sentido de desenvolver uma visão global da responsabilidade de todos os Estados e indivíduos para com a humanidade. Ver ADORNO, Roberto. The precautionary principle: a new legal standard for a technological age. In: Journal of International Biotechnology Law; vol 1, p. 11-19, 2004.
71. Princípios gerais
2. As técnicas de RA podem ser utilizadas desde que exista probabilidade efetiva de sucesso e não se incorra em risco grave de saúde para a paciente ou o possível descendente, e a idade máxima das candidatas à gestação de RA é de 50 anos (Brasil, 2013).
8O primeiro resultado de gravidez obtida através da ICSI foi publicado na revista Lancet em 1992, por Palermo et al., autores do artigo Pregnancies after intracytoplasmic injection of single spermatozoon into an oocyte.
9A contagem baixa de espermatozoides classifica-se em oligozoospermia severa (concentração de espermatozoides por mL < 2 milhões) e astenozoospermia <5a 10% de espermatozoides móveis) (Santos, 2010, p. 292).
10Para um correto diagnóstico, torna-se necessário identificar o tipo de azoospermia, se obstrutiva ou não obstrutiva. Na primeira, a espermatogênese é normal, mas há uma obstrução em algum local dos ductos seminais, enquanto que nos casos não-obstrutivos há uma deficiência (ou ausência) da espermatogênese, ou seja, ausência de espermatozoide no ejaculado seminal, devido à deficiência de produção de espermatozoides, que é identificada em 12% dos homens inférteis. Nesse caso, utiliza-se a célula precursora do espermatozoide: a espermátide (Santos, 2010, p. 293).
11Ao analisar o 23º registro latinoamericano de reprodução assistida, que representa os resultados de procedimentos realizados em 2011 por 145 centros de 12 países na América Latina, observa-se um uso insdicriminado da ICSI, pois dos 28.065 procedimentos homólogos que foram realizados em 2011, apenas 4.089 consistiam em ciclos de FIV, ao passo que, 23.976 foram ciclos de ICSI.
12Segundo a autora, o tamanho das amostras coletadas pelos primeiros estudos, entretanto, era insuficiente para uma análise estatística rigorosa dada a variedade de características tanto no que se refere às causas de esterilidade dos progenitores, quanto ao tipo de técnica empregada; tipo de gravidez resultante (múltipla ou não); idade da mãe; implantação ou não de embriões congelados, etc. O quadro de crianças avaliadas também variava quanto à idade, zona geográfica e etnia.
13Beral, V.; Doyle, P. (1990).. Births in Great Britain resulting from assisted conception, 1978-87. Report of the Medical Research Council. Working Party on Children Conceived by In Vitro Fertilisation. British Medical Journal, 300, p. 1229-1233. Disponível em http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC1662883/pdf/bmj00178-0017.pdf. Acesso em 21 set. 2014.
14A síndrome é devida a uma alteração cromossômica numérica, onde o portador é do sexo masculino e apresenta o cariótipo 47, XXY. A característica mais comum é a esterilidade. Apesar da função sexual ser normal, os portadores da síndrome não podem produzir espermatozoides devido à atrofia dos canais seminíferos e, portanto são inférteis. Normalmente, são magros e apresentam: estatura elevada; braços relativamente longos; pênis pequeno; testículos pouco desenvolvidos devido à esclerose e hialinização dos túbulos seminíferos; pouca pilosidade no púbis; níveis elevados de LH e FSH, podem apresentar uma diminuição no crescimento de barba; ginecomastia (crescimento das mamas), devido aos níveis de estrogênio (hormônio feminino) mais elevados do que os de testosterona (hormônio masculino); problemas no desenvolvimento da personalidade provavelmente em decorrência de uma dificuldade para falar que contribuem para problemas sociais e/ou aprendizagem. Informações extraídas de http://www.ghente.org/ciencia/genetica/klinefelter.htm. Acesso em: 11 de nov. 2014.
15Fukuyama (2003, p. 140) explica que a palavra “típico” não implica determinação genética rígida, pois todas as características mostram variação dentro da mesma espécie; do contrário a seleção natural e a adaptação evolucionária não poderiam ocorrer. Tipicidade, portanto, é um artefato estatístico e refere-se a algo próximo da mediana de uma distribuição de comportamentos ou características. O autor também rebate a alegação de que não existiria uma natureza humana haja vista a inexistência de verdadeiros universais ao argumentar que uma característica não precisa ter uma variância (desvio padrão) zero para ser considerada um universal, já que não existe quase nenhum assim. Para ser considerada universal, a característica precisa ter uma mediana e um desvio padrão relativamente pequeno.
16Pinto (2005, p. 175), nesse ponto, explica que a palavra técnica designa um adjetivo e não um substantivo: o ato, o produzir é que deve ser julgado técnico ou não. A técnica define uma qualidade do ato material produtivo, mas, em virtude de uma mutação semântica, passou a remeter ao homem que pratica atos técnicos. Dessa forma, enquanto adjetivo, a técnica refere-se ao modo de operar, enquanto substantivo refere-se, primeiramente, à pessoa do operador, convertendo-se em seguida em um conceito abstrato. Essa substantivização, como dispõe Pinto (2005, p. 180), acaba por ocultar o papel do homem e suas responsabilidades.
17A constituição de parceiras entre clínica especializadas e laboratórios farmacêuticos traz consigo a indagação a respeito das responsabilizações. Essa questão da responsabilidade civil da reprodução humana assistida é abordada de forma detalhada por Fernandes (2005, p. 127-150).